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Publicado no Jornal da Tarde, 10/06/2002.

Da vaca brava ao neo-corporativismo

Todos conhecem a expressão "vaca louca" que se refere a uma doença que ataca o gado, afetando o seu sistema nervoso, tornando-se perigosa e transmissível aos seres humanos.

Poucos porém se lembram da operação "vaca brava" que foi a destruição de automóveis que os trabalhadores tinham terminado de fabricar, nos idos dos anos 80.

Foi o tempo de um sindicalismo agressivo. Os trabalhadores saíam das fábricas e se dirigiam ao pátio das montadoras para quebrar vidros e amassar a lataria dos veículos que haviam produzido naquele dia.

Em outros casos, ao se desentenderem com as empresas, os trabalhadores quebravam os computadores, telefones, faxes e arquivos das montadoras e outros equipamentos de escritório. Era o trabalho versus o capital ou o capital versus o trabalho.

De lá para cá, muitas coisas mudaram. Patrões e empregados aprenderam que se não acabassem com a guerra interna, jamais venceriam a guerra externa - a da competição nacional e internacional.

Hoje, com a desindexação dos salários, o aumento da concorrência e o fantasma do desemprego, as negociações tornaram-se mais realistas. Houve um tempo em que elas eram essencialmente teatrais. Quem sentava na mesa buscava dar o lance mais exótico para ser notado pelo rádio e televisão e fotografado pelos jornais e revistas. Dirigentes dos sindicatos de empregados e empregadores preocupavam-se muito mais com a platéia do que com o futuro de seus filiados. A inflação colaborava para isso. Os aumentos salariais eram enormes, e engolidos pela inflação em poucas semanas.

Nos últimos dez anos, as condutas tornaram-se mais respeitosas. Muitos vêem nisso o enfraquecimento dos sindicatos. É uma visão acanhada, e que ignora uma nova face do sindicalismo, ou seja, a influência dos altos dirigentes sindicais nas políticas públicas e decisões de governo.

Nesse sentido, o sindicalismo brasileiro segue os passos do sindicalismo europeu. A interface entre sindicato e governo está renascendo na União Européia com leis, acordos e políticas públicas que são cunhados com a participação crescente dos líderes sindicais. Na verdade, os sindicatos estão reinventando a si mesmos ao defenderem não apenas os pleitos imediatos mas a adoção de novas normas e novos valores na sociedade. Eles saíram da área estreita do mercado de trabalho e passaram a atuar nas áreas dos temas sociais, ambientais e educacionais.

Guardadas as devidas diferenças, as centrais sindicais do Brasil também ocupam posições estratégicas quando indicam representantes em órgãos do governo como, por exemplo, os conselhos do BNDES, FAT, FGTS e vários outros, sem falar na sua articulação com o Ministério Público e Ministérios do Trabalho, Justiça e Previdência Social. Nesses ambientes, os sindicalistas buscam melhorar a vida dos trabalhadores através de ações que vão muito além às contendas adversárias que ocorrem nas mesas de negociação. O mais interessante é que, na discussão das políticas públicas, os sindicatos se misturam com entidades que até pouco tempo eram suas concorrentes na disputa do apoio popular e dos recursos públicos: as organizações não-governamentais (ONGs).

Não vejo do lado dos empregadores uma estratégia semelhante. Muitos sequer perceberam que o mundo do trabalho mudou inteiramente e que as reivindicações populares vêm de uma amálgama de várias organizações para as quais não existe nenhuma contra-partida empresarial. Os que ignoram essa nova realidade limitam-se a chorar o leite derramado depois que as decisões são tomadas e homologadas pela sociedade. Eles desprezam o fato de que a sociedade democrática evolui na base de "checks and balances" que dependem do amadurecimento de todas as forças que a compõem.

É de se destacar o investimento responsável que as centrais sindicais vem fazendo no aprimoramento de seu pessoal e no uso de informações atualizadas e obtidas através das redes internacionais por elas mantidas ou através de redes de organismos que são diariamente visitadas como, por exemplo, a ONU e todas as suas filiadas, o Mercosul, o NAFTA e a OMC.

Não será surpresa se surgir no Brasil alguma variante do novo sindicalismo europeu - o que poderá ser acelerado por uma eventual vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2002. Num verdadeiro movimento pendular, o Brasil faria uma rápida travessia, passando do neo-liberalismo para o neo-corporativismo... É esperar para ver.