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Publicado em A Folha de São Paulo. 23/12/1990

Livre negociação vinga em 1991?

Está duro para o presidente Collor implantar a livre negociação salarial entre nós. Numa economia que se desregulamenta, é imperioso flexibilizar-se a sistemática de rejustamento de salários. Indexação não combina com desregulamentação.

Três fatores conspiram contra a livre negociação no Brasil. Em primeiro lugar, a própria inflação. Toda vez que a taxa de inflação chega aos dois dígitos, a pressão por reajuste automático é imediata. Como não temos o costume de prever cláusulas desse tipo nos acordos e convenções voluntárias, pensa-se sempre na indexação compulsória, pela via legal.

Em segundo lugar, está a própria Constituição. Por mais absurdo que possa parecer, nossa Carta Magna, no seu artigo 114, permite a recusa à negociação. Enquanto nas sociedades avançadas a legislação obriga as partes a negociar, aqui, a Constituição garante o direito de recusar.

Em terceiro lugar, tem muito peso a tradição cultural brasileira de buscar proteção em terceiros na hora de dificuldade. O brasileiro quer ter a garantia de que, havendo impasse, a lei e a Justiça estão ali para protegê-lo. Ele não convive bem com o conflito - mesmo o de natureza construtiva. Para nós, dá insegurança saber que muitos países não possuem Justiça do Trabalho e que tudo é acertado diretamente entre as partes - custe o que custar.

Quando se junta inflação, Constituição e protecionismo, entende-se porque a pressão por indexação é tão frequente neste país. Com raras exceções, os próprios agentes econômicos demonstram uma clara preferência pela indexação no campo salarial. O Congresso Nacional, na verdade, simplesmente reflete a vontade dos trabalhadores, o clamor da imprensa e até mesmo a aspiração de inúmeros empresários que vêem na indexação uma forma cômoda de conviver com seus empregados, pois, com ela, obtém-se o amparo legal para passar aos preços tudo aquilo que é custo - inclusive os reajustes salariais.

O presidente Collor e sua equipe econômica têm enfrentado essa conspiração econômico-cultural com sucesso. Nos últimos dez anos, nunca se conseguiu manter a livre negociação por dez meses, como é o caso atual. O último recorde ficou com a dupla Mailson da Nóbrega e Dorothea Werneck, na temporada de 1989, que alcançou a marca de cinco meses.

Será que a livre negociação vingará em definitivo em 1991? Nada entra tão rápido e de modo definitivo neste país. A prática da livre negociação será gradual e fará parte da reformulação de nossa tradição cultural.

Mas, é claro, esse processo pode ser acelerado por medidas deliberadas e como consequência dos próprios fatos. A inflação baixando, a pressão por indexação obviamente diminuirá, tornando a livre negociação mais palatável. A negociação direta entre empregados e empresas poderá ser por eles escolhida como a melhor forma para ajustar o emprego na hora da recessão. A participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa - que parece prestes a começar - exigirá a prática intensa da negociação direta.

Todos esses fatores devem contribuir para acelerar o processo de aprendizagem e aceitação da livre negociação em 1991, não só dos salários como nos demais aspectos do mundo do trabalho.

E o constrangimento constitucional? Já se fala em mudanças na Constituição para o ano que vem. Uma das mais urgentes deveria ser a transformação do direito de recusar em obrigatoriedade de negociar no campo trabalhista. Mas, mesmo que isso não ocorra, o Brasil pode contornar adequadamente esse problema moodificando a legislação ordinária que trata da negociação. Bastaria que, na CLT, o legislador estabelecesse que qualquer parte pode se recusar a negociar depois de ter tentado essa prática, por certo tempo, sem êxito. Em outras palavras, o ajuste de diferenças só seria realizado pela Justiça do Trabalho quando, efetivamente, as partes demonstrassem ter fracassado na negociação.

Chego a concluir que o Novo Ano se mostra mais promissor do que conspirador no campo da livre negociação. Dos fatores acima alinhados, recessão, redução de inflação e participação nos lucros ou resultados desfrutam de alta probabilidade de ocorrência. A mudança constitucional é menos provável; mas a reforma da CLT parece viável e necessária num momento em que o Brasil desregulamenta sua economia. Ela deveria ser um dos temas centrais da mesa do "entendimento nacional" - não o que está em recesso, mas o outro, aquele que entrará em cartaz quando as partes estiverem rolando o despenhadeiro. Afinal, é ali que estão representados os maiores interessados no disciplinamento da negociação.