Publicado em A Folha de São Paulo, 11/07/1989
Brasil - república sindicalista
Ao derrubar o veto presidencial e aprovar a lei salarial, o Congresso Nacional estabeleceu que todos os acertos individuais entre empregados e empregadores deixam de ter valor no Brasil. Qualquer transação só terá validade se realizada pelas entidades sindicais. Mais do que isso, tais entidades ganharam o poder para contestar os entendimentos realizados diretamente entre empregados e empregadores.
Esse é o recado do artigo 8º, da referida lei: "As entidades sindicais poderão atuar como substitutos processuais da categoria, não tendo eficácia a desistência, a renúncia e transação individuais".
Assim fazendo, a nova lei reduziu substancialmente a flexibilidade para se negociar em nivel de empresa. Reduziu também a liberdade dos empregados e empregadores fazerem ajustes com base no desempenho individual empresarial. Toda vez que a entidade sindical não gostar de um determinado acerto salarial, qualquer seja a sua natureza, ela tem o direito de interferir, podendo até desmanchar o que foi acertado livre e diretamente entre empregados e empregadores Ela pode exercer esse direito imediatamente ou ao longo do novo prazo prescricional que é de cinco anos.
A lei deseja assim, que, no campo salarial, daqui para a frente, tudo venha ser feito de modo homogêneo e de acordo com a vontade dos sindicalistas, reconhecendo neles a suprema capacidade de sempre saber melhor do que as partes o que é bom para elas.
É incrível que o cerceamento à negociação direta tenha sido estabelecido pelo Congresso Nacional que é, por excelência, a casa da negociação. Essa lei trará inúmeras complicações no nosso já conturbado mundo do trabalho. As confusões conceituais são imensa. A Constituição Federal, no seu artigo 8º, não fala em "entidade sindical" mas sim em organização sindical e sindicato. Uma federação, por exemplo, é uma organização sindical formada por um conjunto de sindicatos. Uma confederação congrega federações. Como identificar uma entidade sindical com base na Constituição de 1988 e na lei salarial? Seria ela um sinônimo de organização sindical? Uma federação? Uma confederação? Ou simplesmente um sindicato? Por que não se considerar o Dieese como entidade sindical? Ou a CGT e a CUT?
A confusão não para ai. Na Constituição Federal a expressão categoria vem sempre seguida dos termos profissional ou econômica, para distinguir a organização dos empregados dos empregadores. A nova lei salarial, ao mencionar apenas categoria, parece Ter desejado cobrir os dois lados. Isso é ainda mais evidente quando ela se refere a entidades sindicais np plural, reafirmando a intenção do legislador de contemplar tanto as organizações de empregados como de empregadores.
Essa lei nos afundou ainda mais no emaranhado cipoal criado pela Constituição de 1988 no campo das relações do trabalho. As conseqüências poderão surpreender até mesmo seus autores. Por exemplo, a liberalidade de uma empresa, ao decidir pagar um salário acima do negociado pelos sindicatos, poderá ser contestada até anulada pela respectiva entidade sindical patronal. Afinal, o poder de substituto processual parece se estender também às entidades sindicais dos empregadores. Um grande imbroglio!
Com a nova lei, as partes ficaram com as e pés amarrados. Todos se complicaram. Ela acabou estabelecendo um jogo de soma zero, trancando os negociadores num quarto escuro e jogando a chave fora. É isso mesmo. A nova lei salarial vestiu uma camisa de força nas duas partes, diminuindo drasticamente, o espaço para a negociação e para o exercício da liberdade dos empregados e empregadores. Com isso, o Brasil deu mais um passo decisivo em direção à república sindicalista, na qual, por lei, a vontade do sindicato se sobrepuja à vontade dos empregados e empregadores. A Constituição de 1988 diz que ninguém é obrigado a se filiar ou manter filiado a sindicato (artigo 8º, inciso V). Letra morta! Sim, porque, com a nova lei, empregados e empregadores jamais conseguirão se livrar da intromissão sindical - mesmo não sendo filiados a sindicatos. É até no caso de terem dele se desfiliado.
Doravante, basta ser empregado ou empregador e, portanto, membro de uma categoria, para o brasileiro ter sua liberdade administrada pela entidade sindical da qual, muitas vezes, não é associado e nem simpatizante.
É difícil pensar-se em democracia em um país quando ela é, por lei, impedida de florescer na base da sociedade e no relacionamento direto entre os cidadãos. Isso nos faz lembrar do tempo em que Portugal garantia aos portugueses a liberdade de votar desde que votassem no Salazar...
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