Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/10/1998
Por quê complicar se podemos simplificar?
Por mais absurdo que possa parecer, o caso que vou narrar é verdadeiro e exprime a caduquice das instituições do trabalho no Brasil.
No interior de Goiás, os produtores vendem uma caixa com 22 quilos de tomates pela irrisória quantia de R$ 1,50. Os tomates "teimam" em amadurecer todos na mesma época. Por isso, os agricultores contratam legiões de trabalhadores para fazer a colheita por 5, 10, 15 dias, dependendo do tamanho da safra.
Como a atividade é temporária, terminada uma colheita, os trabalhadores passam para outra propriedade - tudo em grande velocidade. Nessas condições, é praticamente impossível recolher suas carteiras de trabalho, fazer o devido registro e superar a colossal burocracia para legalizar, em definitivo, aquelas contratações.
Contratar sem registro em carteira, como se sabe, é ilegal, cabendo ao Ministério do Trabalho autuar os infratores. Para cada trabalhador sem registro, o fiscal é obrigado a lavrar uma multa no valor de R$ 363,00. é isso mesmo, R$ 363,00 para um produtor que vende uma caixa de tomates por R$ 1,50!
Descontadas as despesas com insumos e mão-de-obra, o que sobra daquela venda é R$ 0,50 por caixa – se tanto. Ou seja, o produtor precisa vender 726 caixas de tomates para pagar a multa de um só trabalhador sem registro em carteira.
Há produtores que utilizam 100, 200 e até 300 trabalhadores para fazer a colheita. Os pequenos fazem o serviço com 10, 15 ou 20 pessoas que colhem 500, 700 ou 1.000 caixas de tomates no período de 5 dias.
No caso de ser autuado por ter 10 empregados sem registro em carteira, o agricultor será obrigado a produzir e vender 7.260 caixas de tomates para pagar a referida multa.
Isso é um absurdo, assim como é absurda a multa que é aplicada quando o produtor não possui o quadro de avisos com os nomes dos empregados. Nesse caso são R$ 2.472,00, o que corresponde a 4.944 caixas de tomates!
Na falta de uma legislação amigável e realista, a Delegada do Trabalho de Goiás, com muita criatividade, está buscando uma série de soluções para contornar esse rosário de absurdos. Os sindicatos de empregados e produtores estão sendo envolvidos em negociações extremamente complexas que, em última análise, buscam uma maneira de dispensar o bendito registro em carteira.
Muitos problemas têm sido superados com a esgrima negocial, conseguindo-se através dela garantir as proteções básicas dos trabalhadores (previdência social, FGTS, descanso remunerado, etc.).
Mas a trabalheira é infernal e vem consumindo uma quantidade de tempo rara e preciosa – e que poderia ser melhor alocado na estimulação de investimentos e geração de empregos. Tudo seria mais fácil se empregados e produtores pudessem dispor de uma lei flexível e que pudesse amparar um contrato de trabalho especial para os chamados safristas.
Hoje, as duas partes vivem com uma espada de Dâmocles encostada no seu pescoço. Por mais criativas que tenham sido as soluções, sempre há uma ponta de incerteza sobre o que pode acontecer no futuro. As próprias autoridades vêem a sua engenhosidade ameaçada por uma eventual punição judicial.
Essa insegurança prejudica a produção e inibe a criação de empregos. é o jogo do perde-perde quando o País, na área trabalhista, precisa praticar urgentemente o jogo do ganha-ganha.
O que acontece com o tomate, ocorre com o feijão e várias outras culturas em Goiás e outros estados do País. A situação é velha, os problemas são antigos, as multas são as mesmas e o irrealismo da lei se mantém inabalável – nada muda.
Nesta hora em que o Brasil entra em fase de ajuste de contas, onde os reflexos sobre o emprego prometem ser dramáticos, está mais do que na hora de se fazer uma revisão geral na legislação trabalhista, não através de medidas de varejo, mas através de uma ação de atacado que reformule o espírito da Constituição Federal assegurando-se, de uma vez por todas, que "tudo o que for livremente negociado entre as partes vale tanto quanto a lei". Isso não depende do FMI, da crise da Rússia, dos bancos do Japão ou dos problemas da Ásia. Depende apenas de nós brasileiros.
|