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Publicado em O Estado de S. Paulo, 29/10/1997

A indústria de conflitos

Você gostaria que um sindicato tomasse o seu lugar num processo e movesse uma ação contra a empresa onde você trabalha, sem o seu consentimento? Pois é isso que está na pauta do Supremo Tribunal Federal para uma decisão iminente.

A Constituição Federal no seu artigo 8o., Inciso III diz: "Ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria...".

Alguns juristas entenderam que a Constituição Federal teria criado a figura da "substituição processual" por meio da qual os sindicatos poderiam acionar terceiros em nome dos trabalhadores, mesmo os não sindicalizados, para defender interesses individuais e sem a autorização dos interessados.

As tecnicalidades jurídicas nesse campo são imensas e nelas não entro por caírem fora da minha especialidade. Lembro-me, porém, que no projeto aprovado pela Comissão de Sistematização (1987) havia uma menção explícita (artigo 10) à referida figura: "À entidade sindical cabe a defesa dos direitos e interesses da categoria, individuais ou coletivos, inclusive como substituto processual...".

Depois de longos debates, os constituintes decidiram não consagrar a figura genérica da substituição processual no campo trabalhista e, por isso, suprimiram-na do texto aprovado.

O Brasil tem um volume colossal de ações trabalhistas. São cerca de 2,5 milhões de processos rolando pelas juntas e tribunais. O Japão, que possui uma força de trabalho quase do tamanho da nossa, tem apenas 1.000. é a diferença entre uma sociedade de dissenso e outra consenso.

A administração dessa gigantesca massa de conflitos é dispendiosa, cria um clima de desconfiança e incerteza entre as partes e inibe os investimentos e a contratação legal do trabalho.

Hoje em dia, para as empresas venceram a competição externa (do mercado) e garantirem os empregos, elas precisam acabar com a guerra interna, substituindo a confrontação entre empregados e empregadores por condutas cooperativas com base em negociação e auto-composição.

A pretendida prerrogativa sindical de poder processar empresas independentemente da autorização expressa dos trabalhadores, vai reverter o referido clima de desconfiança e incerteza? Penso que não.

No mundo desenvolvido, a fonte do relacionamento entre empregados e empregadores se desloca cada vez mais da lei para o contrato porque este reflete a vontade das partes, é mais flexível e permite ajustamentos constantes. No Brasil continuamos amarrados numa lei que foi feita no tempo de uma economia fechada e pouco concorrencial, que nada tem a ver com a atual. A possibilidade das empresas se tornarem reféns dos sindicatos estimulará os investimentos e a geração de empregos? Duvido.

O Brasil possui uma estrutura sindical sui generis. A lei brasileira garante receita aos sindicatos sem nenhuma referência ao seu desempenho. Não é a toa que temos quase 20 mil sindicatos, enquanto que os Estados Unidos têm 200.

A grande maioria dos sindicatos brasileiros não tem a menor representatividade. Quem tiver tempo e curiosidade, pode se deliciar com a lista das entidades oficialmente registradas no Ministério do Trabalho. Do lado dos trabalhadores, dentre outros, estão o Sindicato dos Artistas Sertanejos do Estado de Goiás, o Sindicato dos Astrólogos do Estado de São Paulo e o Sindicato dos Vendedores de Acarajé do Estado da Bahia. E, do lado patronal, aparecem o Sindicato de Chapéus, o Sindicato de Guarda-Chuvas e Bengalas e o Sindicato de Camisas de Homens e Roupas Brancas - os três do Estado de São Paulo.

Como se vê, o Brasil é o campeão de leis, de encargos, de sindicatos e de conflitos. E somos ainda os campeões da ilegalidade pois 57% dos brasileiros trabalham no mercado informal.

Alguma coisa está errada. Será que a geração de mais receita para os sindicatos e advogados trabalhistas através de um festival de processos sem autorização dos interessados vai criar um clima de harmonia entre capital e trabalho?

Ao contrário. Para exercer a tutela sindical da substituição, os trabalhadores serão equiparados aos cidadãos absolutamente incapazes, cuja vontade só pode se manifestar por intermédio de outros. Para provar o contrário, eles terão de insurgir-se contra o substituto (sindicato), criando, assim, uma epidemia de novos conflitos.

Uma coisa é garantir direitos. Outra é promover a indústria do conflito. O Brasil precisa de instituições amigáveis, que estimulem o entendimento direto entre as partes e atraiam investimentos geradores de empregos. Está na hora de modernizarmos o atual sistema de relações do trabalho que, afinal, prestou serviços ao País por mais de 50 anos e, por isso, merece se aposentar. é uma questão de justiça...