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Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/01/2003.

Como humanizar a globalização?

O Diretor Geral da OIT, Juan Somavia, solicitou dos brasileiros sugestões para o grupo de trabalho que trata das dimensões sociais da globalização naquele organismo. Para tanto, organizou um evento em Brasília (20 e 21 de janeiro de 2003), com representantes de trabalhadores, empresários, governo, acadêmicos e organizações não governamentais.

Nas discussões, houve um reconhecimento geral de que a globalização não pode ser estancada. Mas a ênfase recaiu sobre os danos e não sobre os benefícios da revolução tecnológica, abertura das economias e desregulamentação dos mercados que caracterizam a globalização.

Como este espaço é insuficiente para fazer um balanço equilibrado, usarei algumas medidas agregadas começando por dizer que a revolução tecnológica das últimas décadas permitiu a criação de milhões de novos bens e serviços, quase todos, com menor custo e melhor qualidade.

No esforço de usar apenas alguns macro-indicadores, destaco que as novas tecnologias permitiram uma redução dramática do peso físico do PIB. É um aspecto pouco observado e que, no entanto, tem enormes implicações sociais. Lembro, por exemplo, que as fibras sintéticas diminuíram o peso das roupas, aumentaram a sua durabilidade, reduziram as despesas com vestuário, etc.

A miniaturização dos microprocessadores, o laser e as fibras óticas diminuíram toneladas de ferro, aço, cobre e outras matérias primas de alto peso físico na composição dos produtos. A aceleração espantosa da velocidade de cálculos e circulação de informações (grátis) economizou uma quantidade colossal de tempo e intensificou o acesso às idéias.

Ou seja, o PIB moderno tem menos peso físico e mais peso mental o que barateou o transporte, a estocagem o acesso, a comercialização, etc.

Inúmeros novos bens melhoraram a segurança humana. É o caso das redes de água de boa qualidade, saneamento, alimentos, vacinas, medicamentos, antibióticos, pesticidas, pasteurização e tantos outros.

Qual foi o reflexo dessas mudanças no bem estar da humanidade? Houve uma melhoria generalizada, quase total. Nos últimos 40 anos, a média mundial de ingestão de alimentos passou de 2.257 para 2.808 calorias por pessoa/dia (um aumento de 24%). Mas e a concentração e as desigualdades? O maior aumento (39%) ocorreu nos países em desenvolvimento cuja média passou de 1.932 para 2.684 calorias/dia. E os subnutridos? Estes caíram de 900 milhões para 790 milhões de pessoas. Aqui persistam bolsões de sofrimento, sem dúvida, mas o hiato diminuiu.

Entre 1950-2000, a mortalidade infantil nos países em desenvolvimento caiu de 178 por mil para 64 por mil. Ainda é alta mas o progresso é inegável. A diferença de expectativa entre países ricos e pobres, que era de 25,7 anos no início do período, atualmente é de 11,6 anos. Até hoje, o Índice de Desenvolvimento Humano, criado em 1975, apresentou os maiores avanços nos países de nível médio. Em quase todos países há mais idosos; além de viver mais, eles têm uma saúde melhor.

A desigualdade de renda, que de fato ocorreu, não pode ser tomada como sinônimo de bem estar e nem tampouco como causada unicamente pela globalização. No caso do Brasil, penso que as maiores desigualdades decorrem muito mais de leis nacionais de má qualidade do que da globalização. Vejamos alguns exemplos.

Dos 70 milhões de brasileiros que trabalham, apenas 28 milhões têm as proteções mínimas das leis trabalhista e previdenciária. Isso porque no processo de elaboração das leis, os que já estavam abrigados na cidadela de proteção venceram os que estavam no mundo da exclusão que, aliás, nunca são chamados a participar da cunhagem de leis. Basta observar o que ocorre com as aposentadorias, pensões, seguro desemprego, FGTS e outras. São "desigualdades legais", com base constitucional, e que não tem nada a ver com a globalização.

O mesmo ocorre na área da educação. Um aluno de família rica, depois de pagar escolas médias caríssimas, ganha de presente, o privilégio de cursar universidades gratuitas - pagas pelo Estado. A desigualdade entre os que recebem e os que não recebem um bom ensino prejudica a empregabilidade, a carreira e a renda. Novamente, essa perversidade não foi causada pela globalização.

Há centenas de outros exemplos de desigualdade legal, produzidos por nós. Somando-as ao protecionismo internacional e à assimetria dos mercados financeiros - que são realmente incontestáveis - surgem os danos sociais. Mas muitos dos bons efeitos da globalização são anulados pelas más políticas nacionais. Devemos criticar a globalização perversa, mas a nossa lição de casa (doméstica) é imensa!