Publicado no Jornal da Tarde, 11/12/2002.
A brutalidade do trabalho na China
O Guilherme Korte é um desses jornalistas que só pára de perguntar quando desfalece... Ele tem uma paciência infinita. Não é a toa que escolheu a China como território de trabalho. Está lá há quase três anos. Tem feito um trabalho magnífico. Investiga tudo em profundidade - sempre além do que dizem as estatísticas oficiais.
Com todas as restrições que o regime comunista impõe para os burocratas liberarem informações, o Guilherme conversa com todo o mundo. Lê tudo o que pode. Faz parte de uma rodinha de pessoas que conhece bem a longa história do país, as fantásticas mudanças em andamento e as perspectivas de médio prazo.
Quando estive na China, em meados do ano 2000, o Guilherme foi uma peça-chave. Apresentou-me a pessoas estratégicas para explicar e interpretar a fantástica revolução econômica que ocorre naquele complexo país. Fiquei impressionado com o que vi. É um crescimento contagiante.
Nas nossas conversas por e-mail, o Guilherme me mantém informado sobre a situação trabalhista da China. Nessa área, os problemas são monumentais. Ele acaba de me enviar um trabalho baseado na leitura que fez nas entrelinhas das estatísticas oficiais - coisa que ele faz com brilhantismo.
Reproduzo abaixo algumas das suas preciosas informações. Pelos dados oficiais, o desemprego nas cidades está em torno de 3,6% - baixíssimo! Mas por trás desse número há o desemprego verdadeiro que grassa nas empresas privadas e estatais instaladas nas cidades e que chega a 10%.
É uma diferença brutal. Além disso, a China convive com um desemprego crescente no campo, que ultrapassa muito a casa dos 10%. Korte estima que, tudo somado, o país tem cerca de 150 milhões de pessoas desempregadas - o que chega perto dos 20% para fins de comparações internacionais.
É um número alucinante. A China tem uma população de desempregados quase igual à população brasileira!
Isso tudo acontece em um país que é campeão de crescimento econômico. Nos últimas duas décadas, a China cresceu mais de 7% ao ano. Mesmo lá, gerar empregos é um empreendimento caro. Segundo os dados apurados por Korte, criar uma vaga numa grande empresa custa 26 mil dólares. Na média empresa, são 14 mil dólares e na pequena empresa, cerca de 9 mil dólares - que, em termos do poder de compra dos chineses, é uma fábula.
E as condições de trabalho, a quantas anda? Fiquei impressionado com a situação de acidentes. A China registra ainda um número expressivo de acidentes nas minas de carvão, fábricas de explosivos, e transporte aquático (fluvial e marítimo). Korte informa terem ocorrido quase 100 mil mortes em acidentes entre janeiro e setembro de 2002. Para ser mais preciso, em um total registrado de 799.567 acidentes (dados oficiais subestimados), morreram 99.820 pessoas. No Brasil, são cerca de 3 mil mortes por ano e isso é inaceitável pois um país civilizado tem de apresentar um número bem menor do que esse.
A magnitude dos acidentes é espantosa. Somente nas minas de carvão foram 2.584 acidentes, tirando a vida de 4.498 trabalhadores. De janeiro a outubro de 2002, 99 acidentes causaram a morte de mais de dez pessoas cada! O número de mortos chegou a 1.831. Ocorreram seis acidentes com mais de 30 mortes cada um.
O governo chinês começa a fazer um esforço mais sério para virar esse quadro. Os resultados assustadores acima indicados já são um pouco menores do que ocorreu em 2001. Uma nova legislação sobre saúde e segurança entrou em vigor no mês de novembro de 2002, assegurando proteções básicas para os trabalhadores urbanos e rurais. Mas a estrada a ser percorrida é muito longa.
O meu amigo Guilherme está otimista. Acha que, apesar de imenso, o problema será superado. Mas, como o tempo no Oriente corre em décadas e não em dias como no Ocidente, o mundo terá de esperar longos anos para ver um quadro mais humano na força de trabalho chinesa. De qualquer forma, prevenir é sempre melhor do que remediar.
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