Publicado em O Jornal da Tarde, 05/10/1994
Revisão e encargos sociais
Esta história é verdadeira. Chegou um chinês numa fábrica de confecções de camisas da Coréia do Sul em dezembro do ano passado e, gostando da variedade dos tecidos e modelos, encomendou 52 milhões de camisas para serem entregues em 100 DIAS. Sim 52 milhões!
Trata-se de um número espantoso para os padrões brasileiros. Mas, na verdade, isso não é nada para um país que tem uma população de mais de 1,2 bilhão de habitantes, em fase inicial de ocidentalização da vestimenta.
O mais incrível é que o coreano, empresário de médio porte, aceitou o pedido. Para dar conta do recado ele imediatamente subcontratou a gigantesca encomenda com várias fábricas de Cingapura, Taiwan, Malásia, Tailândia, Hong Kong, Indonésia, Paquistão e Bangladesh e, em 100 dias, o chinês voltou a Seul para apanhar a encomenda. As camisas foram vendidas pelo coreano por US$ 1,65 e, depois de transportadas chegaram a Pequim por US$ 1,95 e foram pagas pelo consumidor na base de US$ 2,00. Isso mesmo, cerca de CR$ 240,00.
Perguntado por que o industrial coreano não pensou no Brasil como um dos subcontratados, ele respondeu, com dados (ele havia explorado essa alternativa há dois anos), que tudo ficaria muito caro, não só pela distância, mas especialmente pela excessiva carga tributária, pelo peso exagerado dos encargos sociais e pela dificuldade de praticar esquemas legais de contratação e subcontratação de mão-de-obra para aquela tarefa específica, sem contar o alto preço do tecido e aviamentos.
No caso em tela, as costureiras das empresas contratadas e subcontratadas trabalham em máquinas modernas e ganham normalmente, entre US$ 200,00 e US$ 400,00 por mês (depende do país) para trabalhar uma jornada de 48 horas semanais com no máximo 15 dias de férias por ano e 14 feriados.
Quando surge uma encomenda tão grande como essa 52 milhões de camisas! – as empresas costumam oferecer um adicional de salário – no caso, foi cerca de US$ 2 mil para compensar o esforço adicional de cada costureira que inclui trabalho em dois turnos de 12 horas, inclusive aos domingos e feriados.
Apesar de extenuante e, em certos casos, até desumano, esse sistema é muito comum nos Tigres Asiáticos, que hoje crescem na base de 7,8% ao ano. Ali é mais do que normal para as empresas e empregados entrarem de mãos, numa empreitada desse tipo. é regra a contratação de empregados adicionais para uma tarefa específica, alguns em tempo integral, outros em tempo parcial; muitos trabalhando na fábrica e outros trabalhando em casa. A empresa quer cumprir o que promete; os trabalhadores querem buscar o salário. Os dois objetivos são alcançados entregando a encomenda.
Esta capacidade de contratar, subcontratar, terceirizar, fazer "pools" etc., que caracteriza a alta flexibilidade daqueles mercados de trabalho, tem atraído empresas européias e americanas para os Tigres Asiáticos. Além disso, os encargos sociais são baixíssimos. Em Hong Kong, por exemplo, não há nenhum tipo de desconto sobre a folha de salários – nem para a empresa nem para os empregados. A aposentadoria é feita por um pecúlio voluntário a cargo de cada trabalhador, havendo complementação, no caso das grandes empresas. A saúde e a educação são de boa qualidade e sustentadas por recursos do Tesouro. Na Tailândia, os encargos sociais totais ficam em torno de 17% - divididos igualmente entre empregados e empregadores. Na Coréia, Taiwan, Cingapura e outros Tigres o quadro é aproximadamente o mesmo lembrando que entre nós os encargos ultrapassam 100%!
Em todos esses países, os investimentos em educação foram pesados ao longo do dos últimos 30 anos. A coréia, até hoje, investe 12% do PIB. A força de trabalho tem, pelo menos, 8 anos de escola de boa qualidade. A sua adaptação às tecnologias modernas tem sido relativamente fácil. Tudo isso dá àqueles países uma enorme vantagem comparativa, em particular nos setores intensivos de mão-de-obra.
Alguns acreditam que a flexibilidade atual será reduzida na medida em que os sindicatos forem se fortalecendo. Mesmo sendo verdadeiro, ninguém sabe quanto tempo isso vai levar. Pode ser daqui a três anos ou uma década. Ou até mais, pois a estrutura empresarial daqueles países é extremamente atomizada. A grande maioria das empresas é constituída de pequenas unidades, muitas delas de base familiar. E a cultura é de parceria.
Por um bom tempo, portanto, o Brasil terá de concorrer com as tais nações. Compete a nós decidir se queremos continuar com muito encargo e pouco salário – e ficar fora do mundo – ou inverter o quadro para mais salário e menos encargo – e participar da concorrência mundial.
Fala-se que, na revisão constitucional, a questão dos encargos sociais é intocável. Se assim for, a decisão está tomada: o Brasil optou por ficar completamente fora da economia global e manter a maior parte da sua gorça de trabalho deseducada e no setor informal. Sim, porque, assim como a Coréia vendeu para China uma camisa por US$ 1,65, ela pode muito bem vender para nós a mesma camisa por cerca de US$ 2,00 – CR$ 240,00. Quem vai deixar de comprar? O que será do emprego dos trabalhadores desse setor? E dos setores correlatos? E de outros setores que podem sofrer a mesma pressão? Essas são as questões que nossos congressistas precisariam responder para toda a população brasileira, além de se preocuparem em assegurar sua reeleição ao evitar os chamados temas polêmicos.
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