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Publicado em O Estado de S. Paulo, 09/03/1990

Pacto sem dor?

Com a aproximação da era Collor, volta-se a falar em pacto social no Brasil. Apesar dos fracassos acumulados nos últimos cinco anos, acho que, dependendo de algumas medidas governamentais iniciais, ele tem chance de sair em 1990. Mas, certamente, não será indolor.

Em que se baseia esta minha hipótese? A História mostra muitas diferenças e uma importante regularidade na dinâmica dos pactos sociais: eles só saem quando a sociedade é dominada pela síndrome do medo.

Seria um exagero se dizer que a maioria da sociedade brasileira teme pela sua sobrevivência no dia de amanhã, por conhecer, com precisão, os perigos dos dias de hoje. Penso, porém, que, ao revelar à Nação o retrato sem retoques da crise atual e a imensidão do precipício em que ora trafegamos em queda livre, o presidente eleito, Fernando Collor, deu um passo decisivo para desencadear a síndrome do medo. Ademais, o Plano Collor promete determinar perdas irreversíveis a partir de seu anúncio, podendo aprofundá-las ainda mais durante a implantação. Esse fato transmitirá aos agentes econômicos a certeza de que uma parte de suas coisas preciosas já se foi e que a outra poderá ir também. Muitos verão o mundo se abrir aos seus pés, como ocorre nos pesadelos das noites mal dormidas.

A instalação de um clima psicossocial dessa natureza faz as pessoas perceberam que, de repente, se tornaram impotentes para, sozinhas, preservarem o que lhes restou de valioso: as empresas, para os empresários: o emprego, para os trabalhadores; a ordem social, para o governo. Chegando a essa conclusão, elas passam a aceitar, e até a buscar, o entendimento comum, trocando a lei de Gérson pela lei da colaboração.

Os pactos sociais (Espanha e Israel), os entendimentos nacionais (Inglaterra, Austrália, México), os acordos básicos entre trabalhadores, empresários e governo (Dinamarca, Itália, França), a concertação social (Alemanha, Áustria, Japão e Suíça) e tantos outros esforços de solidariedade entre as partes só vingaram quando se generalizou o medo econômico, político, social ou uma combinação deles.

Nas várias tentativas de pacto da Nova República, estivemos muito longe desse clima. Na verdade, a maioria dos protagonistas presentes (empresários, sindicalistas, governo e até políticos) praticou muito mais a arte de defender seus interesses do que a de dividir sacrifícios. Em conseqüência, toda tentativa de pacto terminou em pacote unilateral, que, simplesmente, adiou a solução do problema e jogou a conta para os mais fracos – os pobres -, que não dispõem de defesas contra a inflação.

Por isso, o desvendamento realista da crise e a determinação de perdas proporcionais para todos os brasileiros (é claro, quem nada tem nada perderá), mostrarão aos mesmos protagonistas a inevitabilidade e, sobretudo, a utilidade da cooperação entre as partes. No pressuposto de que o Plano Collor contemple, de fato, este rateio de perdas (renegociação da dívida interna, compulsório sobre patrimônio, remuneração diferenciada das aplicações financeiras, novos impostos e outras), vejo o pacto social com boas chances de funcionar como mecanismo auxiliar importante na adoção da política de rendas, no combate à inflação e na administração do próprio plano.

Será, sem dúvida, um processo muito doloroso. Mas menos traumático do que ocorrem eu outros países que, com crises semelhantes, foram jogados nos flagelos internacionais, nas guerras intestinas ou na desordem da hiperinflação. A via do pacto, como um substituto daqueles processos de desorganização, é menos devastadora, mas não indolor. É a única alternativa pacífica para os que têm o que perder. Oxalá, Fernando Collor entre para a História como o brasileiro destinado a prevenir os grandes desastres.