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Publicado em O Estado de S. Paulo, 29/11/2005.

Povo conta

Em artigo anterior explorei os problemas que estão por trás das insurreições de imigrantes ocorridas em várias cidades da União Européia. O continente sofre de "euroesclerosis" que se caracteriza pelo reduzido crescimento econômico, estagnação do emprego, baixa natalidade e envelhecimento acelerado da sua população.

Esses problemas são graves. Há alguns anos atrás, os analistas da Revista Economist fizeram uma comparação da dinâmica demográfica da Europa com a dos Estados Unidos ("A tale of two bellies", The Economist, 24 de agosto de 2002). Era de se esperar que, com o enriquecimento dos países, a taxa de natalidade cairia.

Isso, de fato, aconteceu, em especial, entre as décadas de 50 e 80. Foi uma época em que tanto a Europa quanto os Estados Unidos admitiram grandes levas de migrantes. Ocorre que, na Europa, a imigração contribuiu apenas para manter a população estável enquanto que nos Estados Unidos ela ajudou a aumentá-la. O Censo de 2000 trouxe surpresa até para os demógrafos americanos. A taxa de natalidade elevou-se, chegando a 2 filhos por mulher, enquanto que entre os europeus caiu para 1,2 filho.

Isso significa que, no futuro, os americanos serão mais jovens e mais numerosos do que os europeus. Em 2050, a média de idade nos Estados Unidos será de apenas 36 anos; na Europa, será de 53. É uma distancia enorme. Com isso, a população dos Estados Unidos ficará entre 400 e 550 milhões de habitantes, enquanto a da Europa será de 360 milhões, menor do que os 400 milhões atuais.

É claro que essas estimativas desconsideram acidentes de percurso como guerras, desastres climáticos, epidemias e pandemias. Ademais, a juventude também tem custos. Povo jovem requer muito investimento em infra-estrutura, habitação e educação. Mas, povo velho gera pesadas despesas em saúde, aposentadorias, pensões e assistência social. Povo jovem gera receita dos que trabalham. Povo velho gera custos para manter os que pararam de trabalhar.

Em 2050, a proporção dos americanos com mais de 65 anos na força de trabalho será de 40%, enquanto que a dos europeus será de 60%. Se nada for mudado, o déficit dos sistemas previdenciários naquele ano será de 100% do PIB nos Estados Unidos, 150% na União Européia e mais de 250% na Alemanha e na França.

Não há dúvida. Para criar uma força de trabalho jovem e pagadora de contribuições sociais, a Europa precisa mais de migrantes do que os Estados Unidos. Esse é o dilema. O terrorismo aumentou a suspeita em relação à gente estranha. Os conflitos recentes pioraram a situação. Além disso, é preciso reconhecer que os europeus sempre foram mais relutantes do que os americanos para aceitar estrangeiros: na Europa, há 8% de imigrantes; nos Estados Unidos, são 12%. Resultado: as insurreições que atingiram a Europa são desconhecidas nos Estados Unidos.

Isso decorre também de diferentes expedientes institucionais. Os programas generosos de seguro desemprego, previdência social e assistência social da Europa são cobiçados por todos, inclusive, pelos imigrantes que, na maioria dos casos, são excluídos. Por sua vez, os programas mais espartanos nas áreas do trabalho e previdência social dos Estados Unidos são abertos a grandes parcelas da população, inclusive aos imigrantes.

As implicações das diferenças demográficas exigem reformulação de muitas políticas públicas. Talvez, os Estados Unidos tenham de gastar menos em defesa e ampliar ainda mais a cobertura dos programas sociais. Ao mesmo tempo, é bem provável que a Europa tenha de reduzir as despesas com programas exagerados e investir mais na integração dos imigrantes à população nativa.

Estamos lidando com problemas de uma complexidade fantástica e que, certamente, desafiarão a capacidade dos governos e a tolerância dos povos por muitos anos, não só na Europa, mas em outras partes. A China, a continuar com a política de um só filho por casal, envelhecerá rapidamente. Em 2050, o gigante asiático terá muito mais gente com mais de 60 anos do que os Estados Unidos. O Japão já envelheceu e procura contrabalançar suas deficiências populacionais, com o uso de migrantes temporários – os dekasseguis. Mesmo assim, em 2050, o país terá apenas 100 milhões de habitantes, 28 milhões a menos do que tem hoje.

Muitas mudanças terão de ser realizadas nas instituições do trabalho e da previdência social nas próximas décadas. Afinal, nenhuma nação sobrevive sem renda, e muito menos, sem povo.