Publicado em O Estado de S. Paulo, 09/05/00
Corporativismo das ONGs
José Pastore
É impressionante a reprodução das organizações não governamentais – ONGs. Em 1990, a ONU estimou em 6 mil as que atuavam no nível internacional. Em 1995, passaram para 29 mil. Hoje são 100 mil. Quando se incluem as nacionais, só nos Estados Unidos, há 2 milhões de ONGs; na Europa, mais do que isso ("Sins of the Secular Missionaires", The Economist, 29/01/00). No Brasil, passam de 500 mil.
Nos últimos 20 anos, muitos governos entraram em parceria com as ONGs para realizar tarefas sociais. Outros passaram a utilizá-las como mediadoras de conflitos armados, choques raciais, lutas religiosas, campanhas ambientais, defesa de minorias e outros direitos.
Mundialmente, as ONGs arrecadam US$ 5,5 bilhões. Instituições multilaterais como o Banco Mundial e o BID, por exemplo, mantém milhares de programas nos países em desenvolvimento nos quais as ONGs têm são intermediárias, executoras e até formuladoras de projetos sociais. Como explicar o avanço das ONGs?
No passado, as teorias de crescimento econômico exageraram o papel do capital físico; na década de 60, passaram a valorizar o capital humano. Hoje, enfatizam o "capital social", definido como a rede de instituições de base que ajudam a sociedade a digerir seus problemas (Partha Dasgupta e Ismail Serageldin, Social Capital, Washington: The World Bank, 2000).
Diz-se que uma sociedade possui um bom capital social quando dispõe de associações horizontais que conseguem (1) compensar as falhas do mercado; (2) afastar as condutas oportunistas; e (3) coordenar a energia da base, transformando-a em sinergia. As ONGs, cultivando confiança e reputação, ajudariam a sustentar as instituições regionais e nacionais, dando a elas a necessária estabilidade.
O público tende a ver as ONGs como entidades filantrópicas e tocadas por pessoas idealistas. De fato, muitas são interlocutoras saudáveis entre governo e povo. Outras ajudam o Estado a desempenhar suas funções. Há, porém, as que mais geram do que resolvem problemas. São ONGs organizadas por uma só pessoa, minúsculas, e que defendem, no fundo, os interesses de seus fundadores. Há também ONGs gigantes, à serviço do lobby de setores econômicos.
É interessante notar uma certa coincidência entre o ocaso dos sindicatos e a explosão das ONGs. Muitas ONGs ocuparam o vazio deixado pelos sindicatos. Mas, entre essas entidades, há importantes diferenças. Os sindicatos representam grupos individualizados; as ONGs dizem defender interesses difusos. Os sindicatos têm seus dirigentes eleitos; as ONGs são dirigidas por co-proprietários. Nas regiões mais pobres, elas mantém uma estreita relação com os políticos locais. Muitas são administradas por suas esposas, com a dupla finalidade de ajudar a comunidade e manter os eleitores mobilizados para hora de votar.
Há ONGs que perdem a independência por excesso de aproximação com o governo. Outras ganham independência por se afastar do governo, mas desenvolvem estruturas, que não podem ser desmontadas por responderem pela sobrevivência dos seus profissionais e trajetória política dos seus mentores.
As ONGs nasceram como entidades sem fins lucrativos. Há muitas organizações desse tipo, sem dúvida. Mas, uma boa parte têm apenas essa fachada. No artigo acima citado, há relatos de milhares de ONGs que fazem o seu próprio marketing; recrutam executivos a preço de ouro; formam um enorme patrimônio; e não saem da mídia. Mais sofisticadas, são as que mantém a face dos caridosos e os braços dos comerciantes.
Existem ONGs independentes, tocadas por pessoas de boa fé e que realizam valioso trabalho no campo social. Ao seu lado, porém, há as que atuam muito mais como empresas do que como associações de interesse comunitário. Finalmente, há as que operam como partidos, atuando na política nacional. Observem quantos ex-líderes sindicais do Brasil são, hoje em dia, dirigentes de ONGs, originalmente criadas com outros fins, como é o caso do MST.
A maioria das ONGs está desbravando com enorme desenvoltura o território do neo-corporativismo. É intrigante que dirigentes não eleitos pelo povo, venham a captar polpudos recursos do povo e ficar livres da fiscalização pública. Mais intrigante é ver organizações avançando com um poder autônomo em uma sociedade democrática que pretende atrelar o processo decisório ao processo eleitoral universal.
Em suma, a análise do mundo das ONGs demanda um rigoroso escrutínio. Já é hora de se separar o joio do trigo e exigir um mínimo de prestação de controle para quem usa dinheiro público. É importante não exceder nesses controles, é claro, porque isso pode representar o atestado de óbito dessas organizações. Mas, não se pode admitir a multiplicação de entidades que, apesar da nobre missão declarada em eus atos constitutivos, são geridas pelo único e exclusivo interesse de seus fundadores. |