Publicado em O Estado de S. Paulo, 07/10/2003.
O sindicalismo depois do PT
Estive na Rússia em setembro. É claro que além de querer conhecer os resultados da transição econômica, crivei os meus interlocutores com perguntas no campo trabalhista.
Com um PIB de US$ 260 bilhões e uma população de 155 milhões, a Rússia vem crescendo a 6% ao ano. Os investimentos têm aumentado 14% anuais; o orçamento público está controlado; a balança comercial é superavitária; a dívida externa é de apenas 27% do PIB; as reservas são de US$ 68 bilhões; e a inflação é cadente (11% em 2003).
São números excelentes em vista o terremoto financeiro de 1998. A potencialidade de crescimento é enorme. Os recursos naturais são abundantes, o povo é bem educado e a produtividade pode aumentar muito no regime de liberdade.
Apesar disso, a população está dividida em relação à economia de mercado. Uns gostam, outros detestam. Os mais velhos se sentem desamparados. O comunismo garantia-lhes pouco, mas era certo. O capitalismo promete-lhes muito, mas é incerto. Há também jovens frustrados. Em 2003, 20 mil russos com menos de 30 anos filiaram-se ao Partido Comunista. São pessoas que se desiludiram por não terem conseguido realizar seus sonhos.
E os sindicatos, o que fazem? Até o momento, nada. A Federação Independente dos Sindicatos da Rússia tem sido impotente para reduzir o desemprego (8%) e aumentar o salário médio mensal (US$ 65). A entidade não conseguiu sequer influenciar na reforma trabalhista de 2002 que, apesar de garantir importantes direitos para os trabalhadores (salário mínimo de US$ 50), liberou os empresários para despedir e fazer contratos flexíveis.
Na verdade, os sindicatos foram de pouca expressão na Rússia comunista, assim como são apagados na China e em Cuba. No caso russo, eles viveram intimamente imbricados nos órgãos do governo e nas próprias empresas nas quais os trabalhadores eram definidos como co-proprietários. Os benefícios (habitação, creches, colônias de férias e bens de consumo) eram distribuídos dentro das firmas e por meio dos dirigentes sindicais. Os sindicatos operaram como agências de seguridade social, com o que, aliás, ganharam bastante dinheiro e acumularam muitas propriedades, existentes até hoje. Devido à essa dependência umbilical, eles nunca ousaram desafiar as decisões das empresas ou do governo.
Com o novo regime, os benefícios foram inicialmente transferidos para os governos locais. Todavia, como os orçamentos públicos eram insuficientes, muitos deles continuaram sendo providos pelas empresas via dirigentes sindicais. E a dependência continuou, na mais deslavada forma de corporativismo - o que explica em grande parte a inação atual dos sindicatos russos.
Mas há um outro fator. Depois das turbulências de 1998, que fizeram a economia encolher 50%, o desemprego foi mantido baixo (8%), graças a um corte brutal de salários que, em muitos casos, chegou a 70% - sem falar nos que não foram pagos. Houve um pacto implícito: as empresas deram o calote nos credores e no governo, mas mantiveram os trabalhadores empregados. E os sindicatos continuaram quietos, para manter a "paz forçada".
Em resumo, as entidades sindicais do comunismo russo se meteram tão fundo nas entranhas do governo e das empresas que perdem a capacidade de defender os trabalhadores. Pesquisas recentes mostram que elas são as instituições menos respeitadas na Rússia ("Labor quiescence in postcommunist Russia", in Stephen Crowley e David Ost (eds.), Workers after workers´states, New York: Rowman Publishers, 2001).
O que se aprende dessa lição? Fica claro que o corporativismo engorda as finanças dos sindicatos e garante bons cargos públicos para os sindicalistas, mas retira a capacidade de representar as partes. Isso depende de independência, liberdade e competição entre os sindicatos - o que o comunismo nunca deu.
Em um governo sindicalista, como é o caso do Brasil atual, muitos dirigentes sindicais almejam fazer uma reforma sindical que promova uma tomada maciça da máquina pública e facilite a criação de fundos para o sustento sindical, formando uma simbiose entre sindicalistas e governantes que, no momento, são entes da mesma origem.
Mas a reforma sindical a ser feita terá de durar muitas décadas. A história ensina que o atrelamento entre sindicalismo, burocracia e militância pode ser fatal para a defesa dos trabalhadores do futuro e para o funcionamento de uma economia competitiva.
Colhi esses dados na Rússia com um olho na reforma sindical do Brasil, e querendo antever o que pode acontecer com os trabalhadores depois que o PT passar. Fiquei preocupado.
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