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Publicado no Jornal da Tarde, 01/06/2005.

Ditadura democrática...

Fazia um certo tempo que a América Latina não era assolada por uma onda de governantes populistas. A doença está voltando em vários países. O caso mais gritante é o da Venezuela onde o Presidente Hugo Chávez pratica todos os tipos de pirotecnia para impressionar a platéia, como fez na Cúpula Árabe-América Latina realizada em Brasília no mês passado e em outras oportunidades.

Hugo Chávez acredita ser messiânico. Sente-se ungido para levar avante a missão de construir um modelo socialista novo e adaptável à América Latina. Sua popularidade chega a 70%. Ou seja, o povo parece disposto a apoiá-lo nas suas aventuras políticas. Depois do plebiscito democrático que o manteve no poder, Chávez assumiu o controle completo das instituições do Estado venezuelano. Em dezembro de 2004, consolidou o domínio do Poder Judiciário, nomeando 12 novos ministros da Suprema Corte e substituindo os que se revelaram "desleais" às suas teses.

Em relação à imprensa, Chávez vem reduzindo os seus gráus de liberdade progressivamente. Ele patrocinou a aprovação de uma nova lei que instaurou o sistema de auto-censura nos jornais, rádio e televisão. Há três meses inaugurou uma televisão estatal para transmitir as idéias do novo socialismo para toda a América Latina. Aos domingos, Chávez fica quatro horas no ar em um programa do tipo "talk show", recebendo perguntas e oferecendo respostas.

No terreno econômico, o governo aumenta a cada dia a sua intervenção nas atividades da livre iniciativa. Chávez criou uma empresa área, outra de telefonia e uma de cimento – todas estatais. No campo, foi instalada uma verdadeira guerra aos latifúndios, muitos dos quais foram desapropriados sem explicações ou base jurídica.

Ao lado disso, prossegue de maneira intensa a formação de cooperativas de trabalhadores que gozam de isenções fiscais para competir com empresas que pagam impostos altos. O plano prevê a transferência de uma grande parcela da produção nacional para os próprios trabalhadores através das cooperativas. Os preços dos gêneros de primeira necessidade têm seus preços controlados.

Os funcionários públicos que lutaram pelo plebiscito na esperança de derrubar o Presidente estão sendo demitidos, a quem são negados passaportes. Muitos deles enfrentam processos administrativos movidos pelo Ministério Público ("Oil, missions and a chat show", The Economist, 14/05/2005).

Como pode um Presidente violar tantas liberdades e ainda assim assegurar uma popularidade de 70%? Ele tem a seu favor três trunfos importantes. O primeiro é o de ter sido confirmado pelo voto democrático, que o credencia para disputar a próxima eleição em dezembro de 2006 em busca de mais um mandato de seis anos.

O segundo é o espetacular crescimento econômico do país nos últimos anos. No ano passado, a economia venezuelana cresceu 16%, propelida, basicamente, pela explosão dos preços do petróleo.

O terceiro trunfo é o aumento colossal dos gastos em programas assistenciais. Em 2004, o governo canalizou 31% dos recursos públicos para tais programas que, junto com os benefícios, injetaram idéias que combatem a propriedade privada, as oligarquias e os investidores do exterior - e defendem a estatização dos meios de produção dos produtos básicos, a nacionalização de empresas estrangeiras e a reforma agrária com base nas cooperativas.

Os três trunfos agradam em cheio uma população que empobrece há 20 anos e que põe esperança no socialismo do século XXI que, segundo as promessas de Chávez, nada tem a ver com o que foi erroneamente praticado no século XX. Para garantir a viabilidade das suas idéias, Chávez nomeou militares para ocupar cerca de 500 posições estratégicas da administração pública, desde o controle de preços até os órgãos de comunicação e educação, passando pela distribuição de recursos para todos os programas assistenciais.

É com esse esquema que Hugo Chávez pretende chegar ao desenvolvimento sustentado e propagar o modelo para o resto da América Latina. Ele tem um pé na democracia e o outro na autocracia. Será que essa combinação vinga?

Penso que não. Se vingar, será a primeira vez na história da humanidade. Por isso, antes de copiá-lo, convém observar cuidadosamente o seu desenrolar – mas à distância. Nada de imitações prematuras. A nossa democracia está cheia de problemas, mas nada comparável às "ditaduras democráticas".