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Publicado no Jornal da Tarde, 08/12/2004.

Crianças em guerra

Em 1999, tive a honra de participar em Genebra das negociações que redundaram na aprovação, da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) através da qual se proibiu o trabalho de menores de 18 anos de idade em atividades degradantes, perigosas ou imorais.

Durante as discussões, defendi que um dos trabalhos mais repugnantes para um menor é o combate em guerras, guerrilhas e motins. Esperava ter o apoio da totalidade dos participantes quando me surpreendi com o voto contrário do representante dos Estados Unidos, país que se diz baluarte da defesa dos direitos humanos.

Só então fiquei sabendo que a lei americana permite recrutar adolescentes de 17 anos para combates militares. Não me conformei. Trabalhei intensamente para proibir o trabalho bélico dos menores. Foram negociações longuíssimas, e de nada adiantaram. Os americanos argumentavam não poder assinar uma convenção que contrariasse uma lei nacional.

Em vista da intransigência e da importância da adesão dos Estados Unidos, trabalhamos a linguagem. O artigo 3º. da convenção aprovada proíbe o recrutamento compulsório de menores de 18 anos em conflitos armados. Graças a esse "compulsório" conseguimos contar com o voto dos americanos e chegar à unanimidade de 185 países – coisa raríssima na OIT.

A lei continua em vigor, mas os Estados Unidos estão, na prática, tornando-a inoperante. Em 2002, as forças armadas usaram cerca de 27 mil adolescentes de 17 anos. Em 2003, foram 11 mil. Em 2003, 62 soldados de 17 anos foram enviados ao Afeganistão. Em 2004, 53 seguiram para o Iraque.

Nos dias atuais, há 470 mil adolescentes inscritos nos programas do exército, mas os treinamentos estão se prolongando até que os alunos completem 18 anos. Não deixa de ser uma atitude digna de aplauso, embora o mais sensato fosse modificar a esquisita lei.

Repugnante continua sendo a conduta de países que continuam colocando em guerra milhares de crianças, sem nenhuma política de desestímulo. Na Colômbia, por exemplo, só em 2004, 14 mil adolescentes participaram de grupos de guerrilhas e paramilitares. Muitos começaram a lidar com armas aos sete anos de idade!

Colômbia, Uganda e Mianmar (ex-Birmânia, no sudeste da Ásia) são campeões no uso de crianças em guerra, com horríveis requintes de truculência. Durante os treinamentos, os menores são obrigados a demonstrar que têm coragem de matar um amigo. Se não o fazem, são mortos.

O desenvolvimento de rifles e metralhadoras mais leves fez aumentar o número de crianças que vão para a linha de frente. A Anistia Internacional estima haver cerca de 300 mil crianças em mais de 60 países envolvidas em combates brutais ("Child Soldiers", Amnesty International´s Human Rights Concerns, 2004). É incompreensível e intolerável fazer das crianças as vítimas da insensatez dos adultos.

Felizes seríamos, no Brasil, se nossas crianças estivessem fora da guerra. Mas a realidade é igualmente bárbara quando se constata que só no Rio de Janeiro, mais de cinco mil crianças participam do crime organizado, onde a regra é a mesma: quem não mata, morre.

Há muita diferença entre essa guerra e a dos campos de batalha do Afeganistão ou do Iraque? Penso que não. Ambas refletem a selvageria de uma sociedade na qual a família e a escola abandonaram as crianças.

Ao lançar uma campanha em prol da salvação dos menores de São Paulo, o Presidente do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Dr. José Renato Nalini, disse uma frase que me doeu muito, mas que é incontestável: "a degradação das nossas crianças é fruto do nosso fracasso".

É isso mesmo: eu e você, caro leitor, que temos mais de 50 anos fazemos parte de uma geração que falhou, tendo contribuído para pôr em guerra uma legião de pobres brasileirinhos. Para nós só resta nos engajarmos de forma ativa nas campanhas sérias que ainda podem salvar os menores de idade como a liderada pelo Dr. Nalini. Nossas crianças não podem continuar a ser as vítimas dos nossos erros.