Publicado em O Jornal da Tarde,30/12/1998
Um fio de esperança
Um século vai se acabando e outro começando. Está cada vez mais claro: Os seres humanos não podem evitar todas as crises, nem as atuais, nem as futuras. Por isso, só restou nos capacitarmos para administrar melhor as crises.
Hoje é consenso que o problema não está em ter ou não ter Estado – mas sim, em ter um bom Estado e, sobretudo, um bom governo.
O Estado é bom quando possui instituições funcionais e quando dispõe de mecanismos eficientes para atualizar essas instituições.
O governante é bom quando garante um mínimo de igualdade de oportunidades e cria um ambiente favorável para os agentes econômicos jogarem o seu jogo buscando a eficiência.
Examinando a qualidade das nossas instituições e dos governos, chego à conclusão que, historicamente, o Brasil sempre esteve próximo do mau Estado e do mau governo. Daí a importância de se reformar as instituições básicas da vida brasileira.
Mas, como reformar uma casa que está pegando fogo? A crise atual exige ações urgentes e reformas demoradas.
Nos dois casos é essencial acertar. Um leve desvio de rota na economia, pode ser corrigido mais à frente. Mas um grande desvio, leva a Nação ao colapso.
A confiança ressurge quando a economia é fortalecida, e desaparece quando a recessão é tida como fatalidade. As altas taxas de juros que tinham por objetivo restaurar a confiança no Sudeste Asiático, em 1997, provocaram um avanço espetacular da desconfiança. O efeito foi o contrário ao pretendido.
A crise atual exige ações em todas as frentes. Para tanto, será essencial uma parceria saudável entre mercado e Estado; entre agentes econômicos, de um lado, e governantes, do mesmo lado.
Essa "ourivezaria social" requerer equilíbrio. Será um erro acudir o presente, negligenciando o emergente assim como superenfatisar as reformas do amanhã, comprometendo o equacionamento dos problemas de hoje.
Os dias atuais são peculiares. Reformar é mais difícil hoje do que no passado. Por quê?
O Ministro Nélson Jobim defende a seguinte tese. O século XX foi marcado pela generalização dos direitos econômicos e sociais, que são bem diferentes dos direitos civis e políticos que marcaram os séculos XVIII e XIX.
Uma coisa é criar um direito civil que não custa nada a ninguém como, por exemplo, o direito de ir e vir; ou uma garantia política como, por exemplo, o direito de votar.
Outra coisa é criar o direito que garante o descanso na velhice, o tratamento da saúde, o seguro contra o desemprego, etc. Estes exigem contrapartida. Requerem pagamento.
As maiorias, evidentemente, gostaram de serem aquinhoadas com os direitos econômicos e sociais. Mas só agora o Estado e o setor privado estão se descobrindo incapazes de arcar com as respectivas despesas. Por isso, propõem reformas nas instituições da previdência, do trabalho, da saúde, da educação, do desemprego, etc. Qual é a implicação disso?
No passado, a resistência às mudanças vinha das minorias. Agora, vem das maiorias - as mesmas maiorias que elegem e reelegem os governantes.
Esse é um novo e desafiador enigma para governantes e governados. Como mudar o que o povo não quer que mude?
O enfrentamento dsse aparente paradoxo – usar a democracia para mudar o que a maioria não deseja - requer muita informação, pedagogia e amadurecimento. Os avanços serão lentos, como acontece com toda mudança social.
Mas não há motivos para desanimar. Neste século, as mudanças sociais têm apresentado um bom ritmo. é sempre bom olhar para trás para apreciar o caminho percorrido.
Há apenas dez anos, o muro de Berlim estava em pé. A cortina de ferro era impenetrável. A União Soviética representava uma fortaleza. Nelson Mandela era um pobre prisioneiro. O Japão era a menina dos olhos dos desenvolvimentistas. A Ásia dava um show de crescimento. O FMI parecia uma cidadela fortificada. E Fernando Henrique se dizia esquerdista.
Quem diria que tudo isso seria revirado de pernas para o ar em poucos anos? O muro caiu. A cortina se abriu. A União Soviética ruiu. Nelson Mandela é líder da democracia mundial. A economia japonesa desabou. A Ásia provocou uma crise planetária. O Fundo Monetário Internacional ficou sem fundos. E Fernando Henrique é acusado de néo-liberal.
No Brasil, temas tabus para a "religião" das maiorias começam a ser debatidos abertamente. Na minha existência, não me lembro de uma discussão tão franca sobre a inviabilidade do sistema previdenciário como ocorre nos dias atuais. Jamais vi um governante dizer ser preciso reconsiderar a questão da equidade na aposentadoria de homens e mulheres como fez, outro dia, o Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Propelidos pela crise, Estado e governo começam a se mover. Quem podia imaginar há dez anos atrás que os governantes brasileiros viessem a se auto-impor uma lei de responsabilidade fiscal que beira o código penal?
Esses são importantes sinais de mudança e, em certa medida, uma indicação de melhoria da nossa capacidade para administrar crises.
O povo brasileiro começa a entender que de nada valem os direitos se eles não podem ser concretizados. Chegará a hora em que os próprios políticos sentirão vergonha de prometer o impossível. Os eleitores estarão cada vez mais atentos contra os que procuram apenas iludir.
Sei que para o leitor que está mergulhado numa crise tão séria como a atual, tudo isso pode soar como otimismo de fim de ano. Mas, não podemos abandonar a perspectiva histórica. Muitas vezes, apertamos o nosso rosto tão fortemente na vidraça que perdemos a capacidade para ver a direção da mudança que está acontecendo lá fora.
Apesar da lentidão que tanto incomoda os que precisam de soluções urgentes, penso que o Brasil está avançando. Tenho grandes esperanças de ver ainda em vida a reforma e o fortalecimento de algumas instituições-chave para o nosso desenvolvimento – a previdência, a Justiça, a organização política e a lei trabalhista. A democracia é o mais lento de todos os regimes, sem dúvida, mas é o mais seguro.
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