Publicado no Jornal da Tarde, 06/08/2003.
Eletrocardiograma de morto
O meu amigo Roberto Martins - mente privilegiada, que consegue identificar com enorme clareza as raízes históricas das condições presentes - tem uma expressão forte para analisar a desigualdade de renda no Brasil, medida pelo coeficiente de Gini.
Ele diz o seguinte: "Entre nós, o gráfico da desigualdade de renda tem se mantido incrivelmente estável ao longo de décadas, como um eletrocardiograma de morto".
É uma bela expressão para um quadro feio. Sim porque não há candidato que não prometa ao povo, durante a campanha eleitoral, acabar com a desigualdade. É fácil sensibilizar os eleitores com os números indicativos de que as minorias ganham 30, 40 e até 50 vezes mais do que a maioria.
Conseguidos os votos e empossados nos cargos, os eleitos seguem fazendo leis de péssima qualidade, que mantém a desigualdade. Esse é o caso da Previdência Social. Pensava-se que, ao revelar ao povo a situação dos poucos privilegiados que se aposentam com R$ 15.000, R$ 20.000 e até R$ 30.000 mensais, isso daria aos governantes a necessária fôrça para mudar e melhorar a situação da esmagadora maioria que se aposenta com R$ 350 por mês.
Que nada. Tudo indica que as distorções vão permanecer. Os políticos continuaram sensíveis aos apelos das minorias. Vi na televisão (29/07/03), um líder da magistratura dizer que "vai lutar pela manutenção das altas aposentadorias da categoria até a medula e independentemente do que pensa a opinião pública". Li em Estado de S. Paulo (23/07/03), a declaração do Presidente de Associação de Juizes de Minas Gerais que disse: "Vamos fechar todos os fóruns e impedir a entrada de advogados e funcionários. Queremos que o movimento tenha repercussão internacional, para afugentar os investimentos", pouco ligando para o efeito desempregador catastrófico que isso teria para os pobres.
O governo recuou em quase tudo na reforma da Previdência Social. A única parte que está ficando intacta é o arrocho em cima dos que ganham pouco e dos que não têm nenhuma proteção porque estão no mercado informal. Parece que vamos ter mais uma lei de má qualidade e o coeficiente de Gini continuará como um eletrocardiograma de morto.
Por que é tão difícil reduzir as desigualdades? O próprio Roberto Martins responde: porque elas são reflexo da má educação, da discriminação, da falta de acesso à terra e ao crédito, enfim, de fatores que têm raízes profundas na história do Brasil. O que acontece no mercado de trabalho, as diferenças de emprego e renda, as discrepâncias nas aposentadorias e tantas outras perversidades, resultam de coisas passadas. As desigualdades foram socialmente construídas; terão de ser socialmente desconstruídas.
Há algum jeito de acelerar isso? Felizmente sim. Pietro Ichino, professor de direito do trabalho da Universidade de Milão propõe o seguinte: Como os que pertencem à cidadela guarnecida pela proteção das leis são minoria e essas leis lhes dão o direito de lutar com vantagem contra os que tentam invadir o seu território, é preciso quebrar esse círculo vicioso, criando-se condições para a participação dos excluídos no processo de elaboração das leis (Il Lavoro e il Mercato, Milão, 1996).
De fato, nas audiências públicas e demais atividades do Congresso Nacional do Brasil, só comparecem os incluídos. Teríamos de convocar os excluídos. Mais do que isso, deveríamos usar as tecnologias da moderna informática para que os excluídos pudessem se manifestar à distância, sem precisar ir à Brasília, o que é impossível.
Essa proposta é bem mais real do que parece. Uma grande parte dos excluídos opera com cartões lotéricos, caixas eletrônicos e video-games – mesmo com pouca educação. Afinal, os brasileiros deram um show de repercussão internacional no uso das urnas eletrônicas na última eleição. Foi ou não foi?
Não seria o caso de se descentralizar os canais de comunicação eletrônica (de forma permanente) para sentir o pulso dos excluídos quando os parlamentares estiverem decidindo sobre suas vidas?
Alguns mais entusiasmados serão tentados em propor a democracia participativa em lugar da representativa. Não chego à democracia digital mesmo porque os plebiscitos de rotina trazem outras distorções.
Estou convencido, porém, que o Congresso Nacional poderia ser arejado com resultados de enquetes e sondagens entre os que são o objeto das leis que visam a redução da injustiça e das desigualdades sociais. Penso que isso tornaria os parlamentares e governantes em geral mais eficientes e mais justos nas suas decisões. E menos demagógicos.
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