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Publicado em A Folha de São Paulo, 26/01/1990

As elites e as massas no Brasil

Relendo a análise de Martin Marger sobre o convívio das elites e das massas na sociedade moderna (Martin N. Marger, "Elites and Masses", 1987), intriguei-me com sua observação de que o sucesso ou o fracasso dos movimentos políticos raramente é percebido de imediato. Leva tempo. Por exemplo, o sucesso da elite ao bloquear uma tentativa de inversão da ordem econômico-social não capta as mudanças nos valores, atitudes e comportamentos implantados pelo movimento derrotado. Muitos insucessos tendem a marcar profundamente a sociedade da mesma forma que muitas vitórias se transformam em retumbantes fracassos ao se revelarem incapazes de mudar concepções básicas.

A análise de Marger parece útil para o Brasil atual. O país rachou no meio da eleição presidencial. Uma boa parcela da sociedade optou pelo movimento derrotado. Por sua vez, o vitorioso não foi fruto da elite, embora esta, é claro, o viu como um tranquilizante salvador na hora do desespero. Quanto tempo durará esse efeito?

As mudanças introduzidas pelos perdedores estão mortas?

As elites nas sociedades modernas costumam resistir ao desafio de inversão da hierarquia social através do controle do Estado e dos meios de produção e comunicação. Mas isso tem limites. Tanto no mundo capitalista como no socialista há inúmeros exemplos de fadiga desses controles sociais.

A probabilidade de movimentos violentos nessas sociedades tem aumentado toda vez que, aos olhos das massas, as elites se mantêm insensíveis às suas aspirações e bloqueiam soluções institucionais, por exemplo, via eleitoral ou judicial".

Mas, a passagem do mero estado de frustração para a ação agressiva depende de outros fatores. Nenhum deles, isoladamente, tem suficiente força para desfechar um movimento violento. Todos eles somados, detonam uma revolução. Parte deles pode causar severos terremotos, cuja intensidade depende de quatro ingredientes básicos: 1) privação relativa;
2) mobilidade social descendente;
3) inconsistência de status; e
4) disponibilidade de meios.

1) Privação relativa - As condições sociais sozinhas não levam as massas a desafiar a hierarquia social. Isso ocorre apenas quando as pessoas vêem tais condições como injustas e passíveis de modificação pela ação organizada. Portanto, as reações agressivas das massas resultam da mudança de sua interpretação da realidade. Os seres humanos são incrivelmente tolerantes para com as situações mais desumanas. Os que estão na base da pirâmide e sofrem de privação absoluta chegam até a resistir à mudança. Mas os que estão um pouco acima, sofrem privação relativa e se sentem prejudicados em relação aos superiores. Eles acham que deveriam ter mais do que têm. Quanto maior é o hiato, maior é o sentimento de injustiça e a disposição para se engajar nos movimentos de mudança, inclusive, os agressivos. Isso nos faz entender o comportamento dos empregados de melhores salários, bons benefícios e segurança de emprego ao se empenharem tão fundamente em movimentos políticos. A história mostra que o ativismo político nasce exatamente nesses grupos. Marx dizia que, para a revolução, mais importante do que o seu valor absoluto, é quando os ganhos dos assalariados sobem menos do que os lucros dos capitalistas.

2) Mobilidade descendente - A probabilidade de ações violentas aumenta quando há mobilidade social descendente, ou seja, quando as pessoas perdem status. Nesse caso, a frustração surge da comparação da situação atual com a passada. Por exemplo, a perda de emprego e a dificuldade de arranjar outro na recessão provoca enorme desconforto, marcado por um sentimento de indignidade e humilhação. Para muitos, isso é intolerável e os leva a agir. Os que perdem o que têm costumam ficar muitos mais raivosos do que os que perdem a esperança de alcançar o que nunca tiveram.

3) Inconsistência de status - Quando as pessosa são obrigadas a trabalhar sob condições de salário mais baixo do que o prestígio de sua profissão - por exemplo, professor - ou têm uma educação muito mais alta do que a ocupação que exercer - por exemplo, o engenheiro-taxista - isso cria a revolta da inconsistência de status. Com frequência, tais pessoas tentam aliviar seu descontentamento engajando-se no ativismo político dos movimentos violentos.

4) Disponibilidade de meios - As ações coletivas não-institucionais só ocorrem se apoiadas por organizações que permitam a expressão explosiva do descontentamento. Elas não resultam meramente do número de descontentes, mas do nível de recursos para repercurtir o protesto. Uma revolta depende de uma boa causa e uma minoria bem organizada.

Será a violência um estado inexorável para o Brasil de amanhã? Isso dependerá, como vimos, de inúmeros fatores e, sobretudo, da elite. Esta terá de aceitar que as instituições econômicas e políticas brasileiras precisam ser reformadas de modo a permitir uma melhor conciliação entre a eficiência econômica e as aspirações individuais. Transformações desse tipo vão muito além de concepções ou de simples troca de dirigentes dentro do mesmo quadro político. Elas exigem uma profunda revisão do arranjo institucional superado. Afinal, o poder dos poderosos não é permanente e nem imutável. Ao contrário, ele é periodicamente desafiado - nem sempre pelos meios institucionais. O risco desse desastre está entre nós. A privação relativa atinge grandes segmentos sociais - exacerbada pela propaganda, novela e campanhas eleitorais. A incossistência de status atinge inúmeros grupos profissionais, inclulsive os mais instruídos. Muitos chefes de família vêm descendo na escala social, arrastando seus dependentes. Os partidos populares ganham adeptos e ampliam seus recursos.

Os ingredientes estão aí. Desta vez, a ameaça foi pela via institucional. A próxima poderá ser diferente. Ninguém deseja isso. Mas é urgente rever nossos comportamentos, valores e atitudes no sentido de fazer convergir os interesses das elites e das massas em nosso país. Esse é um desafio a ser enfrentado por nós brasileiros. Crescer, amadurecer e aprender a trocar é uma tarefa a ser realizada aqui mesmo.