Publicado em O Estado de S. Paulo, 16/02/1999
O FMI tem culpa?
Desconheço caso em que a chegada do FMI tenha sido festejada por qualquer nação. Os seus técnicos são sempre recebidos como algozes, gente fria, que exige sacrifícios e impõe sofrimento.
No Brasil, a reação não é diferente. Assim foi nos idos dos anos 80 e está sendo agora. O que mais se critica é a maculação da soberania nacional, a perda de autonomia política e a exclusão dos brasileiros na discussão do seu destino. Ultimamente, o FMI vem recebendo ataques adicionais por ter apresentado receitas desprovidas de conteúdo social e que falharam num grande número de países.
Resolvi dar uma lida nos estatutos e em alguns "papers" recentes do Fundo Monetário Internacional. Fiquei surpreso com a abrangência da sua missão e com sua elevada preocupação com as questões sociais.
Nos estatutos do FMI está escrito com todas as letras que sua missão fundamental é a de "fomentar a cooperação monetária internacional, com vistas a alcançar e manter altos níveis de emprego e renda".
Michel Camdesus, em trabalho recente diz que, "diferentemente do que ocorreu nos anos 70, quando o assessoramento do FMI se concentrava exclusivamente nas questões macroeconômicas, hoje, com a experiência adquirida ao abordar os problemas dos países em desenvolvimento, os aspectos estruturais e sociais, inclusive a questão da equidade e combate à pobreza, ganharam grande relevância" (Michel Camdesus, Promoción de la Equidad em um Marco Macroeconômico Sólido, 1998).
Será que as "maldades" aqui propostas, que geram recessão, desemprego e desigualdade social estariam sendo praticadas no Brasil por um desalinhamento dos técnicos do FMI em relação aos estatutos da entidade e as recomendações de seu diretor?
Nada disso. Naquele documento, Camdesus deixa claro que o FMI parte do pressuposto de que uma política macroeconômica sólida é essencial para se chegar à equidade social, assim como reconhece serem essenciais algumas políticas eficientes nos campos do desenvolvimento do capital humano e atendimento dos grupos de baixa renda, acrescentando que, por trás de tudo, deve haver um bom governo e instituições responsáveis.
Quem pode discordar desses princípios? Talvez as divergências surjam nos detalhes. Mesmo aí, o referido documento gera mais consenso do que dissenso. O FMI recomenda um sistema tributário justo e abrangente; a redução de gastos públicos improdutivos; a ênfase na saúde preventiva e educação básica; e, finalmente, a adoção de medidas de proteção social para grupos vulneráveis, em especial, os desempregados.
Como rejeitar essas idéias? Talvez, o problema surge em relação à dosagem do tratamento proposto. Por exemplo, a geração de um superávit de 3,5% do PIB em apenas um ano, soa alarmante. A prática de juros reais acima de 20%, é vista como ameaça à economia nacional.
Precisamos entender, porém, que a situação é gravíssima e que chegamos a ela pelo descaso dos que tiveram mais de dez anos para fazer as reformas estruturais - e não fizeram.
Nós brasileiros somos conhecidos por deixar tudo para a última hora. Assim é com a entrega do imposto de renda, o recadastramento do INSS, o licenciamento do carro, a ida ao dentista, etc. No ano passado, foi só o governo concluir o acordo dos US$ 41,5 bilhões de empréstimo, para todos celebrarem, com falso alívio, a possibilidade (irreal) de adiar mais uma vez as benditas reformas.
Foi a delonga nas mudanças que jogou no sufoco atual e nos força, agora, a fazer tudo em apenas dez meses.
Os órgãos multilaterais de assistência financeira e o próprio FMI apreenderam que só há uma maneira de induzir os nossos políticos a agir com pontualidade. é através da pressão continuada e crescente elevação da temperatura.
Quais são os verdadeiros culpados pelo caos a que chegamos? A quem competia promover as reformas? Quem deixou de fazê-las?
As respostas são óbvias. Os autores dos sucessivos adiamentos foram os próprios brasileiros, em especial, os que tinham e têm o dever de fazer em tempo hábil a reformulação dos sistemas tributário, previdenciário, fiscal, trabalhista e judicial.
A nossa indisciplina anterior é a grande responsável pelo sofrimento atual. E ninguém virá aliviar a nossa dor nesta hora, muito menos quem tem de emprestar dinheiro e garantir um aval para que outras instituições voltem a acreditar no Brasil. A tarefa era nossa, continua nossa e será sempre nossa. Se a crise tiver o pendão pedagógico de nos ensinar essa dura lição, será um ganho – um sinal promissor de uma importante mudança cultural.
|