Publicado em O Estado de S. Paulo. 22/11/1991
Solidariedade sem consenso
Especulou-se há pouco tempo sobre um plano governamental bastante diabólico, cujo objetivo seria precipitar a hiperinflação para, a partir daí, costurar o entendimento. Um absurdo! Mesmo porque a hiperinflação não pode ser planejada. é como o leite no fogão: por mais atentos que fiquemos, ele ferve e derrama na nossa cara.
Há um grande acordo em torno da tese de que a solução da crise econômica exige um entendimento político. Mas o povo brasileiro anda cético. Desiludiu-se com o governo que há pouco elegeu. Está frustrado com os parlamentares. Desencantou-se com o futebol. Perdeu até o ímpeto de ver o papa. O próprio carnaval está em decadência.
Como construir o consenso nas areias de tanto ceticismo? Negociação e voluntarismo, até aqui, fracassaram. Nas várias tentativas, ninguém quis ceder nada – nem políticos, nem agentes econômicos.
O que fazer, então, quando o consenso é impossível? Nesse caso, a Nação tem de aceitar a "solidariedade sem consenso". Isso pode parecer estranho, mas é o tema central do livro de David I. Kertzer Rituals, Politics and Power, publicado pela Yale University Press.
A "solidariedade sem consenso"surge nas crises graves – quando o barco está afundando. No meio do desespero, seus ocupantes se agarram uns aos outros, até mesmo os que se detestam. Nessas situações, é comum aparecer uma liderança que mais ordena do que consulta. Com isso, o lider ganha apoio para executar o que for necessário e conquista ligitimidade para adotar medidas impopulares, manipulando duas forças. Uma, dramática, que registra o fim de festa e cria uma insegurança generalizada – quase pânico. Outra, esperançosa, que aponta para uma saída penosa, mas positiva.
é da combinação de medo e esperança que surge a solidariedade sem consenso. A crise se resolve, sem dúvida, mas à custa de muitos traumas. Melhor seria se tudo pudesse ser feito via consenso.
Nós brasileiros, normalmente, valorizamos mais as pessoas do que as regras. Numa situação de pânico, então, um bom líder será ainda mais venerado. Nossa cultura incensa muito as personalidades e pouco as instituições. Entre nós, há uma permanente demanda por líderes do tipo pai-herói. Em torno dele há um grande potencial para a tal solidariedade sem consenso.
Mas, além do herói, o autor dedica grande atenção aos símbolos. Eles têm a capacidade de fazer convergir divergências, ajundando a acomodar idéias conflitantes. Os símbolos unem o que está desunido – sem muita justificativa racional. Por exemplo, quando se testam alguns dos artigos da Constituição americana – um símbolo altamente valorizado – sem dizer que eles fazem parte da Constituição, as divergências são enormes. Mas, quando se diz que são princípios constitucionais, surge um fantástico consenso.
Os símbolos produzem franjas de solidariedade. Assim já foi a campanha do "Ouro pelo bem do Brasil". O mesmo ocorreu na febre da Copa do Mundo, com o "Pra frente Brasil", ou até com o "Ame-o ou deixe-o". Em outras palavras, os símbolos atiçam as emoções, instigam a ação coletiva e reforçam o sentimento de pertencer. Além disso, oferecem esquemas simplificados de raciocinar que, uma vez internalizados, exercem uma influência poderosa nos julgamentos: raramente as concepções políticas das pessoas são fruto de exame crítico e debate profundo.
Portanto, o agravamento da crise numa cultura que valoriza muito as personalidades tem grande chance de desembocar em heróis e símbolos cuja função seria precipitar a solidariedade sem consenso. Isso aconteceu em outros contextos personalistas. As reuniões iniciais do pacto espenhol, por exemplo, foram realizadas sob o manto do rei e numa sala do Palácio de Moncloa, repleta de fotografias da mortandade provocada por Franco, que ali simbolizavam perdas horríveis e abominadas por toda a sociedade.
O herói salvacionista sistematicamente sintetiza medo e dissemina esperança. Se o caminho for esse, oxalá tenhamos um herói democrático. Mas há riscos quando se consideram os traços de uma sociedade que põe mais fé nas personalidades que nas instituições.
Em suma, o agravamento da crise pode nos conduzir à solidariedade sem consenso. O herói dará o toque. Os símbolos cuidarão da amálgama das dissidências. Mas tudo será doloroso, incerto e cheio de perdas. Não valeria a pena, então, insistir um pouco mais na solidariedade via consenso? é claro que sim. Nenhuma solução justifica e devastação econômica, social e moral de uma hiperinflação. Mas convém agir rápido, antes que o leite derrame na nossa cara.
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