Publicado em O Jornal da Tarde, 29/03/1995
O Real e a cultura brasileira
Quem vê de longe costuma perceber coisas que os que olham de perto não enxergam bem. Tenho um colega americano que gosta de contrastar os traços comportamentais do brasileiro com os dos povos de cultura anglo-saxônica. Nos nossos diálogos, insisto que comportamentos dos brasileiros mudam muito conforme a região, nível de educação, renda e classe social. Ainda assim, ele diz ver muitos traços peculiares em nosso povo. Quais são eles?
(1) Ele vê o brasileiro como um povo que gosta de cerimônias, eventos, condecorações e de pirotecnia verbal. De fato, para nós, os eventos tendem a ser mais importantes do que os resultados. Bem diferente é a tradição anglo-saxonica. Os resultados afloram de eventos bem estruturados, cronometrados e cuja função básica é a de facilitar o atingimento de metas desejadas. Para o brasileiro, que valoriza tanto a improvisação, um excesso de estrutura e organização chega a ser sinônimo de falta de criatividade. Os eventos têm sabor em si mesmos e devem ser levados com certa permissividade de modo a instigar a imaginação.
(2) O brasileiro é um povo que ama a liberdade e se sente bem em ambientes descontraídos. Mas, o brasileiro ama um tipo muito especial de liberdade: a que se baseia mais nos direitos do que nos deveres. De fato, quando se olha para a nossa Constituição, é espantoso o número de direitos desconectados meios como ocorre com os direitos trabalhistas, previdenciários, da mulher, da infância e da adolescência.
(3) O brasileiro é um povo que valoriza mais as pessoas do que as regras. Ele se liga mais nos heróis do que nas instituições. Se aparecer alguém que se apresenta como capaz de resolver nossos problemas, a tendência imediata é passar a essa pessoa todo o poder para que execute a mudança - podendo até mesmo mudar as regras.
Se os heróis têm tanto peso e se os brasileiros valorizam mais as pessoas do que as regras, por que Fernando Henrique Cardoso teve tanta dificuldade para levar os parlamentares a aprovarem as reformas estruturais na Constituição?
Não tenho a resposta definitiva mas apenas uma hipótese. Segundo ela, as referidas dificuldades decorrem basicamente da falta de exercício do papel de líder que a população conferiu a Fernando Henrique Cardoso. O seu capital político erodiu-se na Presidência da República, nos primeiros meses do seu mandato, em decorrência dessa ausência o que, aliás, não ocorreu quando ele foi Ministro da Fazenda. Na ocasião, ele praticamente morou no Congresso Nacional onde exerceu uma liderança pró-ativa que o levou a convencer os parlamentares a cortar seus próprios recursos com os quais criou o Fundo Social de Emergência. Foi um sucesso esplendoroso.
A postura defensiva de FHC nos seus primeiros três meses de mandato, entretanto, deu tempo para as forças políticas de prefeitos e governadores tirarem de pauta as duas reformas mais essenciais para uma resolução rápida do problema do déficit púbico, ou seja, as reformas tributária e fiscal. A previdenciária é essencial, sem dúvida, mas seus efeitos são de longo prazo.
Todos sabem que sem mudanças constitucionais não há âncora capaz de manter na superfície o barco do Real. Com rombos no orçamento, o governo será forçado a emitir moeda ou vender títulos, o que reacenderá a chama da inflação. Para o povo, isto será um choque brutal pois a maioria está convencida de que o pior já passou e que a atual estabilidade de preços é definitiva. Um desastre: FHC poderá perder simultaneamente o apoio da população e dos políticos.
Mas, o jogo não está perdido. Longe disso. Ele pode ser virado. Basta que FHC mobilize os traços culturais (1) e (3) acima indicados e compense o traço (2) que se refere ao apego dos brasileiros a uma liberdade inviável de muitos direitos e poucas obrigações.
Ou seja, as circunstâncias chamam o Presidente da República a investir todo o seu prestígio pessoal e organizar eventos de impacto que possam levar o povo a querer as mudanças propostas. Isso, juntamente com acordos políticos legítimos, induzirá os parlamentares a aprovarem as reformas de uma vez por todas.
Não me atrevo a especificar quais deveriam ser os melhores eventos para mobilizar a opinião pública e embaraçar os parlamentares. Não sou "marqueteiro político". Mas, para quem é do ramo, não será difícil encontrar, neste momento, os meios, símbolos e acontecimentos que empolguem o nosso povo em favor da manutenção do Real e de um amanhã melhor.
Dizem que a gente tem de dançar conforme a música. Se a nossa música é de personalismos e acontecimentos de impacto não há como evitar assumir a liderança e montar o clima de mudança num momento tão crítico como o atual.
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