Publicado em O Jornal da Tarde, 01/02/1995
O preço da confiança
Num de seus primeiros atos, em 1995, o Presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma advertência forte e contundente. Disse que, no seu governo, não haveria tolerância para com os que praticam atos de rapinagem.
Isso me levou a reler um livrinho de Frederic Bastiat (A Lei) pois, poucos dias depois daquele alerta chegou à mesa do Presidente da República dois pedidos de referendo para atos aprovados pelo Congresso Nacional: a anistia dos senadores que usaram indevidamente a gráfica do Senado Federal e o aumento de vencimentos dos próprios parlamentares.
Na concepção de Bastiat, que publicou seu livro em 1850 - os dois atos puderam ser caracterizados como lances de "pilhagem" - ou rapinagem - contra o erário público. Vale a pena acompanhar o seu raciocínio.
Homens e mulheres - diz Bastiat - sempre que possível, tentam viver à custa dos outros, através da pilhagem. Se deixada às forças da natureza, essa pilhagem só terminaria quando a sua prática se tornasse mais dolorosa do que o trabalho. Para que não se chegue a esse ponto, os seres humanos estabelecem as leis.
Teoricamente, as leis deveriam ser feitas em benefício da coletividade. Ocorre que, muitas vezes, elas são feitas para o benefício dos próprios legisladores. Parece ser exatamente esse o caso da anistia e do aumento de vencimentos dos nossos parlamentares. Eles fizeram uma lei para si mesmo e, na linguagem de Bastiat, praticaram a mais deslavada pilhagem. Ninguém discute a legalidade de tais atos assim como é impossível duvidar do seu caráter de pilhagem. Trata-se, para Bastiat, de uma "pilhagem legal" mas, indiscutivelmente, uma pilhagem.
Como identificar os que praticam a pilhagem legal? Bastiat responde: "é muito simples. Basta verificar se a lei aprovada visa permitir a quem aprovou que se apodere de coisas que pertencem a outrem".
As conseqüências da pilhagem legal são sérias. Quando os parlamentares legalizam seus atos de pilhagem, os demais agentes sociais têm duas reações. De início, eles procuram frear a referida pilhagem. Mas, verificada a sua impossibilidade, eles passam a querer participar dela.
O livrinho de Bastiat nos dá muitos outros ensinamentos. Ele diz de modo claro e singelo que a melhor maneira dos governantes fazerem o povo respeitar a lei é quando eles se fazem respeitados. Quando a lei e a moral se contradizem - como nos dois casos em tela - os cidadãos têm pela frente à alternativa cruel de perder a moral ou perder o respeito pela lei.
Esse foi, sem dúvida, o maior de todos os estragos que os senhores parlamentares produziram ao praticar a sua pilhagem legal, como definida por Bastiat. Eles enfraqueceram ainda mais o mínimo de esperança que restava na sociedade brasileira, abalando severamente a solidariedade social. Durkheim atribuía à essa solidariedade uma função central na manutenção da ordem das sociedades humanas. é isso que dá o sentimento de união aos membros do mesmo grupo. Ele insistia que a solidariedade se forma aos poucos mas ela emerge também de um símbolo forte, de um ritual contagiante ou de gesto contundente. Uma boa liderança, que decide exercer seu carisma na hora certa, pode unir todo um povo em torno do mesmo ideal. Com base nisso é que os governantes costumam ganhar ou reconquistar o respeito dos governados - adquirindo ainda mais força para continuar governando.
Um dos rituais que poderia muito bem desempenhar esse papel integrador no momento atual seria o veto presidencial. Afinal, os parlamentares passaram para o Presidente da República um veneno altamente corrosivo da solidariedade social. Eles desejavam que aquele mesmo Presidente que falou forte contra os atos de rapinagem, viesse a sancionar uma pilhagem legal.
As opções deixadas ao Presidente da República foram cruéis. Se vetasse, ele ganharia o povo e perderia os parlamentares. Se aprovasse, ele ganharia os parlamentares e perderia o povo. Se silenciasse, ele minaria a confiança de toda a nação. Foi uma escolha difícil. Um grande desafio.
São exatamente nesses desafios que surgem os grandes estadistas. O que os distingue dos políticos comuns é a sua coragem de correr riscos, deixando clara a sua firme intenção de sempre ficar do lado do povo.
Sabe lá o que FHC está pensando... Isso, nós só vamos saber depois da decisão tomada. Ela indicará se o Presidente julgou ser mais fácil recuperar a confiança do povo ou resgatar a compreensão dos parlamentares. Vamos ver até que ponto as lições do velho Bastiat podem ter alguma influência depois de mais de 150 anos de promulgadas. [O Presidente aprovou as duas medidas].
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