Publicado em O Jornal da Tarde, 17/08/1994
A força eleitoral do real
A vida é cercada de riscos. De um lado, há os riscos inevitáveis. é o caso da morte: sabemos que vamos morrer; mas não sabemos quando. E não há como calcular, reduzir ou se livrar desse risco.
De outro lado, há os riscos evitáveis. Esses podem ser calculados, atenuados e até eliminados. é o caso de um negócio, onde se pode ganhar ou perder. Se uma pessoa quiser reduzir ou até eliminar o risco de perda, é só fazer um bom seguro.
Enquanto os riscos inevitáveis são praticamente iguais para todos, os evitáveis têm uma gradação que varia de pessoa para pessoa. Na verdade, o que para uma é evitável, para outra pode ser inevitável.
Para os mais ricos, por exemplo, o risco de perder dinheiro no processo inflacionário é um risco evitável. No Brasil, eles sempre dispuseram de uma série de mecanismos de proteção - a indexação e a ciranda financeira - que funcionavam como um "seguro contra a inflação". Para os mais pobres, porém, esse risco sempre foi inevitável. Carecendo dos referidos mecanismos, eles estavam fadados a perder para a inflação com tanta certeza quanto os mortais sabem que vão morrer.
A proteção da indexação e da ciranda financeira tem importantes reflexos na psicologia das pessoas. Por meio delas, as pessoas reduzem o seu estado de incerteza e adquirem o mínimo de estabilidade emocional para continuar operando dentro de um ambiente flutuante.
Para os indefesos que não dispõem da mesma proteção, o processo inflacionário determina um estado de permanente apreensão. Por isso, além de faltar renda, falta a eles o mínimo de estabilidade emocional para poder continuar a viver no meio da incerteza. Isso dá angústia, desânimo e frustração.
O Plano Real provocou uma mudança muito profunda na psicologia de todos os indefesos, em especial, dos mais pobres. Com a estabilidade de preços, eles ganharam uma sensação de segurança que vai muito além da segurança econômica, chegando ao equilíbrio psico-social.
Para eles, foi uma agradável descoberta verificar que os preços da semana passada não aumentaram e, alguns, até baixaram. A estabilidade de preços reduz o risco do futuro pois insinua que o dia de amanhã será muito parecido com o de hoje. Com preços mais baixos e com um crediário mais transparente, essas pessoas voltaram a consumir, fazendo renascer as suas abandonadas esperanças sobre um futuro melhor.
Esse mudança de natureza psico-social tem profundas implicações no comportamento das pessoas em todas as áreas, inclusive, na eleitoral. Daí a repentina migração das intenções de voto dos indefesos verificada nos dois meses que antecederam a eleição de 1994 - do Lula para o Fernando Henrique.
Por quê uma migração tão rápida? No meio de incontroláveis aumentos de preços e na ausência total de mecanismos de proteção, só restava aos indefesos se agarrarem com unhas e dentes nas promessas dos que, em última análise, vendiam a esperança de uma vida com menos riscos. Mas, com a estabilidade dos preços trazida pelo Plano Real, o que era uma esperança, transformou-se em imediata realidade. Isso teve grande impacto no interior das pessoas.
A sensação de conforto e bem estar trazida pela nova situação econômica é das mais gratificantes, especialmente, para quem sempre sonhou com isso mas nunca experimentou a realidade. Daí a migração de voto. Na cabeça do eleitor, as coisas funcionaram assim: "Por que haverei de votar em um candidato que promete fazer, se há outro que já fez o que precisava ser feito"?
As mudanças de natureza psico-social têm uma força muito poderosa em qualquer campanha eleitoral. Ao se manter a estabilidade de preços, seria difícil encontrar argumentos contra um candidato que realizou, antes da eleição, o que os seus adversários prometiam fazer depois dela. Os adversários de Fernando Henrique, nas ruas e nos comícios, passaram a sentir um povo bem diferente, mais confiante e pedindo a manutenção do Plano Real.
Ficou impossível demolir a liderança de quem proporcionou aos indefesos o que era privilégio dos mais ricos: a transformação de riscos inevitáveis em riscos evitáveis, contornáveis e administráveis. O Plano Real engessou os demais candidatos na eleição de 1994. A força da estabilidade de preços superou a força das promessas. Foi um trabalho de mestre. E a quatro mãos: duas de sociólogo e duas de economista.
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