Publicado em O Jornal da Tarde, 15/03/1995
Copenhague e New York
A primeira semana de março de 1995 foi marcada por dois fatos aparentemente contraditórios: em Copenhague, a ONU promoveu uma mega-reunião para diminuir a pobreza enquanto que, em Nova York, os investidores fizeram de tudo para salvar a riqueza.
Quem teve mais sucesso? Em relação à pobreza, os líderes mundiais assinaram um elegante compromisso de tudo fazer para reduzir o sofrimento de mais de 1 bilhão de pessoas que vivem na miséria. Em relação à riqueza, as autoridades mobilizaram um pesadíssimo aparato monetário para salvar o dólar e outras ex-moedas fortes.
No curtíssimo prazo, os ricos venceram. De um jeito ou de outro, evitou-se a bancarrota mundial prenunciada no início daquele mês. Até mesmo o Brasil safou-se da pior e que levou os técnicos do Banco Central a comemorar uma vitória contra os especuladores que tentaram assaltar de paus e pedras o nosso infante Real.
No longo prazo, porém, tudo indica que a salvação dos ricos dependerá da resolução dos problemas dos pobres - e vice-versa. No início do terceiro milênio, dos 6,5 bilhões de habitantes que vivem neste planeta, 5 bilhões estarão no Terceiro Mundo. A gigantesca massa de pobres aumenta muito mais depressa do que o minoritário grupo dos ricos. Cerca de 97% do crescimento da população mundial dar-se-á nas camadas já empobrecidas.
A sobrevida dos despossuídos e a preservação de um mínimo de ordem dependerão fundamentalmente das oportunidades de trabalho dos que precisam comer, vestir e morar. Isso, por sua vez, depende da aplicação adequada dos recursos financeiros em investimentos que geram trabalho e produzem bens de utilidade.
Apesar dessa clara interdependência, esses dois mundos - o econômico e o social - insistem em ignorar um ao outro. Os investidores em moeda, em New York, pouco queriam saber do que ocorria nas discussões de Copenhague da mesma maneira que os participantes daquela reunião pouco se lixavam com os destinos das finanças mundiais.
Esses dois mundos são parte do mesmo problema. Um não pode viver sem o outro. Ambos têm de ganhar o jogo diário de fazer sobreviver suas próprias vidas. é isso mesmo: trata-se de um mesmo jogo. No mundo das finanças e no mundo da pobreza, o objetivo comum é do salve-se quem puder sabendo-se, porém, que, no longo prazo, um só sobreviverá se for garantida a sobrevivência do outro.
A humanidade não poderá assistir impassivamente, e por muito mais tempo, o encolhimento do número dos "insiders" e a explosão da quantidade dos "outiders". Vejam o que acontece no microcosmo da realidade brasileira. O aumento das desigualdades e a explosão da pobreza têm levado os poucos "insiders" a se protegerem cada vez mais nas suas cidadelas domésticas, utilizando-se de grades de ferro, cães pastores e guardas particulares, ao mesmo tempo em que a crescente legião de "outsiders" vai fazendo multiplicar os grupos de condutas ameaçadoras que põem em risco a vida dos "insiders".
O mundo está em busca de um contrato social mais eficiente para garantir o equilíbrio das diferenças. A história recente provou ser inviável estabelecê-lo por meio da força ou através de um Estado que produz todas as coisas. Ao mesmo tempo, os fatos dos últimos anos mostraram que a derrocada do centralismo não significa a vitória do liberalismo.
A ONU, com toda sua boa vontade e gigantesco aparato burocrático, tem sido capaz de produzir muitas reuniões mas poucas soluções. Com a reunião de Copenhague ela provou ser mais fácil organizar debates do que resolver problemas. Mostrou ainda uma profunda alienação ao dissociar o mundo econômico do mundo social.
Mas Deus escreve certo por linhas tortas. Foi assim que, na mesma semana em que tudo isso ocorria na Dinamarca, o resto do mundo percebeu, de modo dramático, que o atual equilíbrio financeiro internacional repousa em elementos de extrema fragilidade estando sujeito a um sério colapso que, se ocorrer, não dará a menor chance para se resolver os mais rudimentares problemas sociais e, muito menos a pobreza mundial.
A turbulência financeira daquela semana funcionou como um alerta de realismo aos que se mantiveram fechados nos salões de Copenhague. Falta agora que os poderosos se sensibilizem para a necessidade de se assegurar um mínimo de ordem social para que todos continuem vivendo neste conturbado e perigoso planeta. Quem sabe isso ocorra quando a comunidade financeira vier a se reunir, talvez em New York, para reescrever o Tratado de Bretton Woods e estabelecer uma nova ordem econômica mundial - como bem sugeriu o representante do Brasil, Ministro Paulo Renato de Souza, ao propor, francamente, uma reforma completa do atual sistema financeiro internacional.
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