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Publicado em O Jornal da Tarde,08/06/1994

Fiscalização sem fiscais

O Brasil vem acumulando uma competência fantástica na organização de eleições. No "super-pleito" deste ano mais de 100 milhões de eleitores comparecerão às urnas para votar em cerca de 30 mil candidatos que concorrem a 1.700 cargos! O pleito será conduzido por 300 mil mesas apuradoras que por sua vez mobilizarão quase 3 milhões de pessoas entre mesários, fiscais, pessoal de apoio, etc. A apuração será realizada por 35 mil juntas, envolvendo cerca de 500 mil cidadãos. Sem falar nos exércitos dos que participam das campanhas, dos montadores de comícios, produtores de rádio, diretores de TV, cartazistas, artistas, pixadores, boqueiros, pesquisadores, analistas, etc.

Tratam-se de verdadeiros exércitos. E, certamente, tudo funcionará bem como já transcorreram bem as várias eleições que se realizaram quase todos anos desde 1986.

O Brasil vai de vento em popa no campo das eleições. Ao lado de tanta competência para eleger, entretanto, é impressionante verificar a fantástica incompetência dos eleitos para gerir a coisa pública. Esse mesmo país que dá um show no campo das eleições, dá um vexame no do emprego, saúde, educação, assistência aos menores, amparo à velhice, violência rural, criminalidade urbana, etc.

é. Uma coisa é ganhar a eleição. Outra coisa é administrar a nação. James Madison dizia que a democracia é um processo de aprendizagem que ocorre em três fases. Na primeira, os governados apreendem a respeitar os governantes. Na segunda, os governantes apreendem a respeitar os governados. E na terceira, os governantes apreendem a controlar os governados.

A julgar por essa tipologia, estamos engatinhando. Ao escolher os governantes através do seu precioso voto, os eleitores dão, sem dúvida, um sinal de respeito aos eleitos. Mas, daí para frente, só se vê buraco negro em nossa democracia. As condutas recentes da maioria dos governantes em nada asseguram que eles apreenderam a respeitar os governados. Isso vale para muita gente do executivo, legislativo e judiciário.

Mas é na terceira fase que residem as maiores lacunas. Estamos longe de controlar os governantes. As recentes denúncias contra eles agitaram um pouco o terreno dos controles sociais mas tudo é ainda muito complicado, demorado e ineficiente.

O Brasil carece de mecanismos expeditos de controle social. Os mecanismos mais eficientes são sempre os mais simples. São exatamente os que custam pouco e funcionam bem. Nunca me esqueço de uma vez que fui lecionar e pesquisar numa universidade americana e, ao verificar que ia ganhar US$ 17 mil no semestre e pagar quase US$ 8 mil de imposto de renda indaguei da encarregada da secção de pessoal:

- Não há um "jeito" de pagar menos? Afinal, venho do Brasil com a minha família e as despesas de transporte e alojamento são imensas... (Brasileiro logo pensa em jeito).

A elegante senhora, com muita paciência, me deu o manual do imposto de renda, sugerindo que eu o estudasse e procurasse o tal "jeito" legal de pagar menos imposto. Depois de várias leituras descobri que eu poderia ser isento caso a universidade pagasse o meu salário a título de "doação" para pesquisa - o que, na realidade, eu ia também fazer. Ao propor esta alternativa à educada funcionária, com a mesma paciência, ela me explicou:

Podemos tentar mas gostaria de lhe explicar, antes de decidirmos, que os contratos de professores (e outros) são colocados naqueles escaninhos ao lado da sala do reitor aos quais alunos, professores, sindicatos, imprensa, têm pleno acesso. O Sr. correrá o risco de ser considerado um "competidor desleal" pelos professores americanos que pagam impostos sobre salários. Se isso ocorrer, o seu nome sairá em manchete no jornal da cidade e no diário da universidade o que poderá lhe causar um "certo" constrangimento no momento em que o Sr. entrar na sala de aula e enfrentar os seus alunos, na maioria americanos. Ainda assim o Sr. quer tentar?

Evidentemente, pus a minha viola no saco; desisti da esgrima; e pedi que esquecesse a pergunta. Ao mesmo tempo fiquei fascinado pela eficiência de um mecanismo tão simples, tão barato e tão eficiente para controlar os contratantes e contratados. é um procedimento de auto-controle através do qual os governados controlam os governantes de forma automática e sem custos.

Se o Brasil utilizar metade da sua capacidade de organizar eleições para criar mecanismos desse tipo, estamos feitos! Precisamos de coisas simples e funcionais. O voto distrital entraria nesse cardápio, é claro, mas já como um prato bastante elaborado. Antes dele, temos de criar instituições de base que permitam aos governados controlarem os governantes sem muito trololó. é a fiscalização sem fiscais.