Publicado em O Jornal da Tarde,12/08/1993
Barril de pólvora
Já vai bem longe o tempo em que os brasileiros olhavam para trás e se viam em situação melhor do que a de seus pais e avós. De fato, ao longo de todo o Século XX, até meados dos anos 70, a grande maioria dos brasileiros estava em posições sociais semelhantes ou melhores do que a de seus antepassados. Somente 11% dos chefes de família haviam descido na escala social.
A partir de 1975 e, em especial, ao longo da década de 80, o quadro mudou. A parcela dos que desceram na escala social chegou a 27% (Ver José Pastore e Archibald O. Haller, O que está acontecendo com a Mobilidade Social no Brasil?, 1993).
O Brasil que sempre foi um país de mobilidade ascendente, começa a experimentar a mobilidade descendente. Quando as pessoas sobem na escala social, elas experimentam um sentimento de conquista, realização e confiança no futuro. Quando descem, elas sentem frustração, desânimo e desesperança.
Esse é o quadro do Brasil de hoje. Quase 30% da população desceu na escala social. é uma imensa massa humana que vive frustrações por não ver dias melhores.
O que esperar desse novo quadro? As pesquisas sobre mobilidade social mostram que quando as pessoas sobem, elas tendem a assumir as atitudes e hábitos das classes mais altas, o que resulta em satisfação e aceitação da realidade social.
Quando descem, elas entram na síndrome de injustiça e indignação, passando a procurar movimentos religiosos ou políticos que se propõem a tratar do seu inconformismo. Na religião, isso é feito pela via da resignação. Na política, pela via da mobilização.
Na alternativa religiosa - especialmente a das novas seitas esotéricas - o inconformismo é canalizado para um fanatismo inofensivo, pois o que se promete é o desfrute de dias melhores depois da morte. Mas, quando a escolha é a da política, especialmente as linhas mais radicais, a promessa é de remoção das injustiças aqui e agora.
Na mobilidade social, a lealdade política das pessoas tende a seguir os valores do status de destino e não do status de origem. Isso significa que, entre as que descem - ou mesmo entre as que ficam estacionadas sem poder subir - é comum o desenvolvimento de simpatias por propostas de transformação originalmente formuladas para as classes mais baixas.
é isso que explica, em grande parte, a preferência de parcelas significativas da classe média brasileira - estacionária ou em processo de descida - pelas mensagens do Partido dos Trabalhadores. Profissionais de nível universitário, por exemplo, cujos pais gozaram de grande mobilidade ascendente e hoje têm suas carreiras bloqueadas pela falta de bons empregos, acabam se engajando em movimentos políticos que seus próprios pais não conseguem compreender.
Um partido como o PT, nessas condições, tem um potencial de crescimento praticamente ilimitado o que facilita a sua pretensão de querer penetrar em todas as camadas sociais.
A sociedade que fecha as avenidas da ascensão social e empurra uma parte da sua população para baixo, gera polarização, instiga a confrontação e eleva o risco de ruptura do tecido social.
A descensão social atiça comportamentos desordenados que fogem inteiramente ao controle político-partidário. A marginalidade, a insegurança e a violência atuais são apenas o prelúdio do que pode acontecer com um povo que já foi alegre, otimista e esperançoso.
Em suma, a recessão prolongada, o insistente desleixo pela educação e saúde assim como a reorientação dos padrões de mobilidade social estão mudando a psicologia social do brasileiro nos últimos 15 anos.
Isso é sério. Nenhuma sociedade consegue manter-se democrática se não for capaz de satisfazer um mínimo de necessidades básicas e oferecer um pouco de esperança para o dia de amanhã. A retomada do desenvolvimento é absolutamente essencial - o que significa dizer que um entendimento efetivo entre os brasileiros é condição necessária para se evitar um desastre maior.
Costuma-se dizer que os agentes econômicos só mudam na base do medo ou do interesse ou de ambos. A profunda deterioração social por que passa o país, já deveria ter espraiado, entre os proprietários, o medo de perder o que têm; entre os governantes, o medo de perder o apoio popular; entre os sindicalistas, o medo de perder os empregos que ainda restam.
Mas, nada disso sensibilizou as partes até o momento. Todos parecem confiar num passe de mágica que jamais acontecerá. Quem sabe, eles tenham de começar a rolar o abismo para então compreenderem que devem se dar as mãos para salvar a ordem que interessa a todos. ocorre, porém, que, nesse momento, a solução negociada pode ser tarde demais. Não seria melhor nos pormos de acordo antes que o desastre aconteça?
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