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Publicado em O Jornal da Tarde, 25/03/1998

O conflito moral da mulher

Acompanho a evolução das mulheres no mercado de trabalho com muito interesse. Entre nós, elas ultrapassaram a marca dos 40% da força de trabalho do Brasil.

Topei, outro dia, com um trabalho chocante. A autora é mulher e, por isso, tem a necessária credencial para começar seu ensaio com uma frase que nenhum homem teria a petulância de usar:

"Nos dias atuais, está difícil encontrar uma boa mulher. A mulher que trabalha está sempre ameaçando alguém com uma ação trabalhista por julgar não ter sido adequadamente promovida ou pedindo ajuda de programas governamentais para usar licenças e criar seus filhos. Outras simplesmente deixam de lado os filhos em favor da carreira. Há ainda as que querem tudo: carreira, filhos, amor, lazer e, por isso, reivindicam uma jornada de trabalho suficientemente curta e flexível para concretizar seus sonhos irrealizáveis" (Deborah Stone, Work and the Moral Woman, 1997).

Pergunto aos leitores do sexo masculino: vocês teriam coragem de escrever uma coisa dessas? Eu vou logo confessando a minha covardia. Um ato desse tipo detonaria a mais fervorosa campanha feminista contra o audacioso escritor.

Mas a autora citada explora o tema de uma maneira muito original e com extraordinária perspicácia. Ela viu coisas que me passaram despercebidas.

Em suas palavras, não há nada de pejorativo ou depreciativo considerar a carência atual de boas mulheres. Ela percebeu que, de uns tempos para cá, o trabalho e a maternidade passaram a ser tratados como obrigações morais das mulheres.

De um lado, cresceu a idéia de que a mulher deve trabalhar fora de casa, não só para ajudar a economia doméstica, mas também para exercitar suas potencialidades. De outro, manteve-se a noção de que o trabalho fora de casa prejudica a vida do lar e rouba tempo da família.

Dessa forma, a mulher fica entre dois fogos. Não faltam motivos para ela trabalhar fora de casa. Ao mesmo tempo, a obrigação de sair de casa é vista como dificultadora do atendimento da educação dos filhos, da doença, do afeto e das crises emocionais.

Em nossa cultura, predomina ainda a noção de que o principal trabalho da mulher é o de mãe. O trabalho conspira contra a vida familiar.

Dentro dessa visão convencional, a alma da mulher é uma alma dadivosa. Se ela se dá no trabalho, ela não pode se dar no lar. A mulher para cumprir um dos objetivos tem de violar o outro.

Nessas condições, de fato, fica difícil encontrar uma boa mulher. Nós convivemos com uma série de construções morais incompatíveis entre a mulher e o trabalho.

As mulheres terão de realizar uma verdadeira revolução para mudar esse modo de pensar. O balanço do tempo e o equilíbrio entre a emoção, o afeto, a razão e a disciplina são necessidades muito presentes para quase todas as mulheres que trabalham fora de casa.

Os homens não conseguem avaliar adequadamente o que essa contradição de papéis significa para as mulheres. Na verdade, eles fazem parte do grupo que cobra delas uma perfeição no exercício dos dois papéis, ignorando os seus conflitos morais.

Esse não é um assunto que vai se resolver por lei ou por ação dos governos. Trata-se de um processo de mudança social demorado e que exigirá a reformulação das normas e valores da sociedade ao longo de várias décadas.

Nesse ínterim, a mulher continuará como a grande vítima do processo, mesmo porque nós homens não vamos desistir de procurar a boa mulher - essa que é tão difícil de ser encontrada.