Publicado no Jornal da Tarde, 08/03/00
A mulher dos anos 2000
José Pastore
Tudo indica que as mudanças que já ocorrem na vida das mulheres terão reflexos profundos nas próximas décadas. Em vários campos, as mulheres já brilham mais do que os homens.
A proporção das mulheres que trabalham e que têm mais de 11 anos de escola no Brasil é de 30%; a dos homens, é de 20%. Nas escolas de segundo grau, 60% são alunas e 40% são alunos. Nas universidades, são 56% e 44%. Na zona rural, onde fazer uma faculdade é difícil, o número de moças é 2,5 vezes maior do que o dos rapazes!
O progresso na educação terá um forte impacto daqui para frente. Mulheres bem educadas cuidam bem da saúde das crianças; ajudam os filhos na escola; têm uma prole pequena; e competem melhor no mercado de trabalho.
Em 1970, menos de 20% das mulheres brasileiras trabalhavam fora de casa; hoje, são 48%. No passado, elas eram jovens, solteiras e sem filhos. Hoje são pessoas mais velhas, casadas e mães. Em 1980, apenas 20% eram esposas; atualmente, 50%. Isso decorreu do declínio dos salários dos maridos e da redução do número de filhos. Contou também a melhoria educacional.
Dentre as que têm nível universitário, quase 80% trabalham fora de casa. Das vagas abertas para médicos, dentistas e veterinários, as mulheres preenchem 83% delas.
Das cinco atividades que mais crescerão nos próximos dez anos, a maioria das oportunidades será aproveitada por mulheres: atendimento domiciliar (especialmente a idosos); serviços de saúde; cuidados com a criança; processamento de dados; e serviços administrativos.
Barreiras invisíveis
Mas nem tudo são flores. As mulheres ainda enfrentam inúmeras barreiras invisíveis - obstáculos criados pela sociedade, que nada têm a ver com capacitação e competência.
No Brasil, em igualdade de condições, as mulheres ganham, em média, 25% menos do que os homens. Mesmo nas profissões tipicamente femininas, elas estão em desvantagem. Com exceção dos professores e costureiros, onde a remuneração é a mesma, há diferenças são expressivas. As secretárias e as enfermeiras, por exemplo, ganham 11% menos do que os secretários e enfermeiros. Entre os auxiliares de escritório, 21%; entre os auxiliares de contabilidade, 38%.
As barreiras invisíveis existem também no campo da promoção. As chefias são povoadas por muitos homens e poucas mulheres, embora isso varie de país para país. No Japão, por exemplo, apenas 10% dos chefes são mulheres; na Alemanha, 20%; no Canadá, 40%; e nos Estados Unidos, 45%. Cerca de 10% das diretorias das 500 maiores empresas americanas são ocupadas por mulheres.
Essa participação é maior no setor público. No caso do Brasil, ela passa dos 30%. Em contrapartida, no setor privado, ela é limitadíssima. Dados de 1991 indicaram que, no Brasil, as chefias ocupadas por mulheres eram de apenas 6%. Nas 300 maiores empresas do País, a proporção não chegava a 4%, e nas 40 maiores estatais era menos de 1%. Hoje, as estimativas apontam para 10%, 6% e 3% respectivamente. Nota-se ainda um crescimento substancial dessa participação no comércio e no setor financeiro. Nos pequenas firmas do Brasil, já há milhares de empresárias.
Apesar dessas restrições, o poder de compra das mulheres do Brasil está crescendo. Por exemplo, nos últimos cinco anos, as vendas de cosméticos e perfumes aumentaram 60%, a maior parte nas camadas de renda mais baixa.
Há exemplos mais eloquentes. As mulheres já compram um terço dos automóveis pequenos e médios no Brasil. São mulheres que adquirem os veículos com seus próprios recursos, saindo da loja com o certificado de propriedade em seu nome.
Os problemas de segunda geração
A entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho trouxe novos problemas. A sua jornada de trabalho tornou-se muito extensa.
A grande maioria dos homens não cozinha, não lava roupa, não passa, não limpa a casa e não faz as camas. Isso é feito por suas companheiras, ao longo de 30 horas por semana, em média, e que se somam a uma jornada de 44 horas, quando trabalham fora de casa. São quase 75 horas semanais!
Além disso, as mulheres-trabalhadoras vivem um ambiente cultural contraditório. No Brasil, ainda predomina a noção de que o trabalho fora de casa conspira contra a vida familiar. Se a mulher se dá no trabalho, não pode se dar no lar. Para cumprir um dos objetivos, ela tem de violar o outro.
Isso cria graves conflitos morais, alimentando um sentimento de culpa que atormenta as mulheres 24 horas por dia. Os homens não conseguem avaliar adequadamente a gravidade dessa contradição, pois são eles que cobram das companheiras a sonhada perfeição no exercício dos dois papéis.
Algumas mulheres, no extremo, começam a cultivar a idéia de família sem homem. Em meados de 1996, o Brasil ficou sabendo que a Xuxa queria ter um filho que fosse fruto de "produção independente" – concretizado em 1998. Casos como esses se multiplicam em vários países e representam uma revolução na família.
Até o final dos anos 50, o relacionamento sexual se baseava no engajamento amoroso de longa duração. Para ter sexo era preciso casar. Na década de 60, o mundo assistiu a separação entre sexo e casamento. O sexo atrelou-se à sinceridade dos parceiros, e não necessariamente ao casamento. O sexo fora do casamento deixou de ser tratado como expressão do pecado, passando a ser considerado como uma saudável expressão de amor. Mas a família continuou essencial para criar a prole. Na década de 90, porém, o casamento começou a se descolar da família. Hoje, muitas crianças vêm sendo geradas e criadas por parceiros não casados, e que não pretendem se casar.
Assim, num primeiro estágio, o sexo se separou do casamento. Agora o casamento ameaça se dissociar da família.
Resta saber qual será o impacto dessa inovação sobre os produtos do relacionamento - os filhos. Só o futuro dirá. Afinal, as crianças nascem sem voz, voto ou veto.
Mas as conseqüências para as mulheres já são visíveis, pois elas se tornam mais sobrecarregadas, no velho estilo em que os homens atribuíam a si o direito de ser livres, deixando para as mulheres os resultados das aventuras.
Para as mulheres, essas mudanças de caráter sociológico pesam tanto quanto as de caráter econômico.
É intrigante que, apesar disso, a vida das mulheres é mais longa do que a dos homens. No Brasil, dentre os 14 milhões de pessoas que têm mais de 60 anos, há 8 milhões de mulheres e 6 milhões de homens.
Aqui também, o que parece vantagem, traz consigo sérios problemas. As mulheres idosas estão muito solitárias. É um problema universal. Nos Estados Unidos, a solidão atinge 33% das idosas e apenas 13% dos idosos. As mulheres que ficam viúvas, raramente recasam. Com os homens se dá o contrário.
No Brasil, há cerca de 10 milhões de domicílios chefiados por mulheres. Destes, 3 milhões são ocupados por pessoas idosas, morando só - na maioria mulheres. É uma grande ironia. O cuidado dos idosos sempre dependeu da mulher. Agora, não há quem cuide dela.
A saída das filhas e noras para fora de casa, acabou solapando o amparo da mulher. Para mais de 60% das mulheres idosas do Brasil, a solidão está sendo um preço altíssimo da vida mais longa. Pouco adianta que o mundo moderno cerque a mulher de sons, imagens, pássaros e flores. Nada substitui o carinho humano.
Talvez seja esse complexo de problemas que tenha levado milhões de mulheres do mundo a não querer mais procriar. É uma atitude radical, mas que está avançando.
Apesar das campanhas do governo, grande parte das moças japonesas, por exemplo, não se animam a ter filhos, mesmo sabendo que o equilíbrio da nação depende dessa decisão. No País, as pessoas com mais de 60 anos já ultrapassam os 20% e serão 30% no ano 2.010. Os poucos jovens não darão conta de sustentar os velhos.
Essa idéia de uma nação sem povo, é estranha. Triste será o dia em que as mulheres desistirem de trazer ao mundo a razão da vida dos seres humanos – a prole.
Mas a entrada da mulher no mercado de trabalho é uma viagem sem volta. É bom que assim seja. O trabalho tornou-se uma fonte de realização para uma enormidade de talentos que foram ignorados e desperdiçados ao longo de séculos.
Essa entrada não é neutra, é claro. Ela traz para a sociedade transformações de grande vulto, e que forçarão os seres humanos a desenhar instituições que garantam um melhor rateio de sacrifícios entre homens e mulheres.
Isso levará tempo. Num primeiro estágio, haverá conflitos. Mas, ao longo das próximas décadas, é bem provável que a humanidade venha a encontrar soluções que permitam, a um só tempo, desabrochar a inteligência e respeitar a integridade de todos. A revolução por que passa a vida das mulheres será a mola mestre da evolução da história do próximo século.
A bibliografia utilizada para este artigo não foi incluída no versão publicada no
Jornal da Tarde
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