Palestra realizada no Congresso Brasileiro de Contabilidade, Gramado, (RS), 28/08/2008.
Mudanças nos Cenários das Profissões: Educação e Empregabilidade
O mundo do trabalho passa por uma enorme revolução. O propósito desta palestra é o de analisar as características da referida revolução e suas implicações para a educação e para as profissões.
Em grande parte, essa mudança é devida a um profundo processo de mutação pelo qual passam as empresas. Muitas se fundem. Outras se subdividem. Várias entram em ramos novos. Inúmeras adotam novas tecnologias e novos modos de produzir e vender.
Isso afeta a composição dos quadros de pessoal e os modos de trabalhar. Afeta também a vida e o conteúdo das profissões. Algumas morrem; outras nascem; e a maioria se transforma.
A mutação das empresas
Aprofundemos a análise da mutação das empresas. Eu sou do tempo em que a General Motors ganhava dinheiro vendendo automóveis. Hoje, aquela empresa gera uma colossal receita, através de seus bancos, emprestando dinheiro. É o caso de uma indústria que adentrou no setor financeiro. O quadro de pessoal que era composto de metalúrgicos e administradores passa a receber profissionais entendidos em mercado de capitais, câmbio, dívida pública, taxas de juros, segurança de crédito, etc.
Eu sou também do tempo em que a General Electric construiu um império mundial vendendo turbinas de avião e tomógrafos para hospitais. Hoje, o grosso de sua receita vem da assistência técnica às turbinas e aos tomógrafos. É uma indústria que fatura prestando serviços. O seu quadro de pessoal também se tornou mais heterogêneo desde que entrou nessa área.
Eu sou ainda do tempo em que as empresas aéreas ganhavam dinheiro transportando passageiros e cargas. Passados vários anos, uma parte expressiva de seus recursos vinham da venda da sua marca para os cartões de crédito. Trata-se de empresas transportadoras que se casaram com os bancos. Novos profissionais foram chamados para compor seus quadros de pessoal.
São alguns exemplos da metamorfose das empresas. Nos dias atuais, já não se sabe a que setor uma empresa pertence. Há indústrias que entram no campo dos serviços. Outras entram no campo das finanças. Da mesma forma, há empresas do comércio que passam a fazer trabalhos industriais como é o caso da papelaria que, ao adquirir uma máquina xerox e um computador, passa a funcionar como gráfica.
As mutações das empresas estão se tornando revolucionárias. O McDonald´s, conhecida pelos bilhões de sanduíches que serve em mais de 100 países, partiu para o ramo hoteleiro usando o seu reconhecido know-how nos campos da presteza, higiene e automação. Seus hotéis se destinam a executivos que são hóspedes exigentes nesses três quesitos. A entrada e saída do hotel são automáticas. Os aposentos são absolutamente limpos. Cada apartamento é equipado com computador, Internet, fax e até cama automática que se adapta à posição favorita dos hóspedes.
No Brasil, as empresas de carro-forte - que antes só transportavam valores - estão realizando o serviço de tesouraria para lojas e supermercados. Esses estabelecimentos passam a usar os espaços para vendas - que é a sua missão principal - e deixam para as empresas transportadoras a tarefa de administrar os recursos. Tais empresas prestam ainda consultoria na área de segurança.
Essa reviravolta tem grandes implicações para o emprego e para as profissões. Toda vez que uma empresa avança em determinado setor (que é estranho à sua missão original), ela é forçada a incorporar profissionais de outras especialidades - que, por sua vez, são dispensados pelas empresas que contratam os seus serviços.
A desverticalização das empresas
Além dessa metamorfose, as empresas passam por um rápido processo de desverticalização. Nos dias de hoje, é desvantajoso fazer tudo. Mais conveniente é fazer o que faz parte da missão central da empresa e subcontratar o resto de empresas especializadas - a chamada terceirização.
Isso está acontecendo porque as novas tecnologias permitiram uma grande fragmentação do trabalho. Giorgio Armani, um dos mais conceituados estilistas italianos, fundou sua empresa em 1974. Naquela época, ele desenhava os vestidos e tinha um grupo de costureiras que se encarregavam de transformar sua idéia em um modelo concreto. Hoje, os estilistas criam o modelo. O corte é feito por determinadas empresas. A costura, por outras. O acabamento, por um grupo diferente. E a entrega nas lojas por empresas de logística. Trata-se de uma rede de produção e transporte. É assim que trabalham as empresas da atualidade. Elas dividem o trabalho em cadeias produtivas, aliás, muito bem coordenadas. Continua havendo uma certa verticalização. Mas é uma verticalização virtual.
Nas empresas que fazem parte dessas redes de produção, os profissionais enfrentam novos desafios. As exigências são maiores. A qualidade e os detalhes técnicos são determinados pelas empresas contratantes. Por isso, quem trabalha em uma empresa subcontratada pela General Motors, Votorantim ou Bradesco, tem de seguir padrões de eficiência dessas empresas.
Apesar de serem separadas, os padrões de produção convergem cada vez mais entre contratantes e contratadas. Já não se pode dizer que só as grandes empresas são exigentes em matéria de qualidade. As pequenas e médias, seguem o mesmo caminho.
Nem se pode dizer que a indústria é mais exigente do que os demais setores. O comércio e serviços estão na mesma trajetória. Até os chamados setores mais tradicionais - como a agricultura no campo e a construção civil nas cidades - aumentam a demanda por qualificação dos profissionais.
Faça um teste. Vá a uma feira de produtos agropecuários e pergunte aos vendedores, por exemplo, o que deve um lavrador saber para usar um novo herbicida. Ele lhe dirá que a primeira exigência é a leitura e compreensão da bula que acompanha o produto. Em seguida, o lavrador tem de saber que tipo de praga pretende destruir, qual a extensão da área, e que tipo de diluição é apropriada. Finalmente, tem de saber escolher o bico adequado e fazer a aspersão de acordo com os procedimentos indicados no produto. Convenhamos, esse lavrador não pode ser analfabeto - nem analfabeto funcional.
As mudanças tecnológicas
As tecnologias existentes não param de se renovar. Na década de 60, uma inovação industrial durava, como novidade, cerca de dois anos - em média. Na década de 70, passou a durar apenas um ano. Na década de 80, seis meses. E na década de 90, algumas semanas. Hoje em dia, há produtos que duram apenas algumas horas. Um banco, por exemplo, anuncia no Programa Bom Dia Brasil um novo CDB atraente, por pagar uma alta taxa de juros e ter liberdade de resgate e, no mesmo dia, no Jornal Nacional um seu concorrente anuncia um CDB ainda melhor - o que faz o primeiro banco reformular seu produto para poder abrir as portas no dia seguinte.
Os profissionais da atualidade são demandados a acompanhar as mudanças nas tecnologias e nos modos de produzir a toda velocidade. Para fazer isso, não basta ser adestrado. É preciso ser educado. Só a educação prepara a pessoa para aprender continuamente.
Isso é essencial nos dias atuais. Nenhuma empresa espera que o funcionário recém-recrutado saiba fazer de tudo. Mas ela espera que ele tenha condições para aprender muitas coisas. Isso depende de uma boa educação básica - e não apenas de especialização. Voltarei a esse tema mais adiante.
Terceirização cria empregos e trabalho
O emprego encolhe nas empresas contratantes e aumenta nas empresas contratadas. Mas não são os mesmos empregados que migram automaticamente de um lado para o outro. Ao contrário, nesse processo, os trabalhadores são demandados a mudar de perfil. As empresas procuram recrutar quem está perto desse perfil. Além disso, desenvolvem um intenso treinamento em tarefas específicas e ligadas ao novo negócio. As empresas de hoje são verdadeiras incubadoras de profissionais. Os treinamentos internos e externos são freqüentes.
Ocorre que tais treinamentos só dão frutos quando os treinandos possuem uma boa educação geral. Para acompanhar a mutação das empresas e as mudanças tecnológicas, a educação básica é o ingrediente crucial. Espera-se um bom domínio da língua portuguesa, conhecimentos razoáveis de inglês ou outro idioma – além da linguagem da informática. Além disso, as empresas procuram quem entende o que lê; quem usa bem a matemática; quem tem bons conhecimentos de áreas vizinhas à sua profissão; quem conhece geografia e história.
Essas são as exigências do lado da empresa. Esses são os fatores que facilitar a empregabilidade. Quem os possui, aproveitam melhor as novas oportunidades de trabalho.
Há mais uma dimensão a ser analisada. Essas transformações têm um enorme impacto nos modos de trabalhar. Alguns continuam trabalhando na base do emprego fixo e de forma contínua. Outros trabalham por projetos e de forma descontínua. Há ainda os que trabalham como subcontratados, terceirizados, por tarefa, e em outros regimes. Hoje em dia se fala em condomínio de empresas. Em empresas satélites. Em sistemistas.
O Brasil não está fora dessas mudanças. Elas já chegaram. E são decisivas para vencer os desafios da nova economia. Muitas delas estão em franco andamento. Está surgindo um novo mundo do trabalho.
A metamorfose das profissões
No meio de todas essas mudanças, há muitas atividades e profissões que morrem; outras que nascem; e a maioria que se transforma.
As novas tecnologias de gráfica, por exemplo, acabaram com os linotipistas e os tipógrafos que faziam composição com tipos separados. O mesmo aconteceu com o telegrafista que foi substituído pelo Internauta.
No ramo do jornalismo, a informática permite que o repórter escreva o texto dentro do tamanho certo para ir direto à rotativa que imprime os jornais, o que dispensa o revisor.
A multiplicação de hospitais acabou com as parteiras e curiosas e assim por diante. São inúmeras as profissões que desapareceram por força das mudanças nas tecnologias e nos modos de trabalhar.
Ao lado delas, muitas novas profissões nasceram e continuam nascendo. Há um enorme conjunto de atividades ligadas à informática e telecomunicações. Novos equipamentos para diagnóstico e intervenção na área da medicina criaram novas profissões. São profissionais que lidam com instrumentos eletrônicos nos laboratórios de análise, na recuperação de doenças renais e cardíacas, nas UTIs, nas cirurgias, etc.
São também profissionais que, com base no conhecimento de informática e eletrônica, trabalham com equipamentos sofisticados nos aviões, trens, metrôs, controle de vôos.
São pessoas que, com base nos conhecimentos da genética, "criam" novas plantas, "clonam" animais, executam um paisagismo arrojado, inovam na biologia oceânica, na ecologia, na astronomia e em tantos outros campos do saber.
As novas profissões e os novos modos de trabalhar não surgiram apenas nos níveis elevados do ensino superior. Eles permeiam toda a estrutura ocupacional. É o analista de sistemas que dá assistência técnica a várias empresas e profissionais liberais. É o "personal trainer" que executa o seu trabalho em inúmeras academias, clubes e residências. É o professor de inglês que dá aulas a executivos na hora do almoço. É a manicura que atende a domicílio. É o limpador de piscinas que vai de casa em casa nas zonas urbanas. É o adestrador de cães que atende as famílias. São os que cuidam de idosos em suas residências, incluindo-se o seu lazer.
Isso mostra que o mundo das profissões também passa por mutações. Um cirurgião nos dias de hoje domina uma série de conhecimentos e instrumentos que sequer existiam há 20 anos. Com freqüência, ele trabalha em equipe que inclui médicos, engenheiros, físicos e outros profissionais especializados, sem falar nos químicos, analistas e radiologistas que lhes dão retaguarda nos laboratórios e nos aparelhos de Raios X, tomógrafos e ressonância magnética. A profissão continua sendo denominada "médico", mas o seu conteúdo mudou profundamente.
O contador dos dias atuais, também, guardou apenas o nome da profissão. As exigências são outras e a necessidade de trabalhar em grupo, com outros profissionais – economistas, advogados, administradores, engenheiros e outros – aumentou de forma expressiva. O domínio dos novos métodos e das novas tecnologias da informática e telecomunicações tornou o contador de hoje um profissional completamente diferente do contador de 20 ou 30 anos. A contabilidade passa por uma profunda mutação. O mercado busca um contador holístico, o que se move bem não só na contabilidade mas também na economia, na administração, na história e até na filosofia.
Essas transformações não atingem apenas as profissões de alto nível de qualificação como as citadas até aqui. Elas atingem, praticamente, todas as profissões. Até mesmo as de menor qualificação.
Gosto de citar o caso do barbeiro. Há 20 anos, dominava o barbeiro artesanal, que cortava tudo na tesoura. Hoje, é o barbeiro industrial, que passa uma máquina de tosa, liberando o freguês em poucos minutos para atender vários outros que guardam o mesmo estilo de cabelo. Há dez anos, os barbeiros artesanais formavam 70% do total de barbeiros; hoje, só 20%.
Vejam o caso da empregada doméstica. Nos dias atuais, uma família de classe média espera que, além de saber limpar, lavar e passar, a empregada saiba tomar nota de um recado telefônico, atender uma visita com cortesia, usar adequadamente o aspirador, o triturador e a máquina de lavar roupas. Utilizar, sem quebrar, a máquina de lavar pratos e, se possível, saber recolher uma mensagem que chegou por fax. O nome da profissão é o mesmo - empregada - mas o conteúdo é bastante diferente do que era há 20 anos.
O que acontece com as profissões, acontece também com os setores. Alguns encolhem, outros florescem.
Quando se leva em conta a precariedade da infra-estrutura do Brasil, podemos antever que o setor da construção civil e pesada terá enormes perspectivas de trabalho ao longo dos próximos dez ou quinze anos, envolvendo engenheiros, arquitetos e um grande número de técnicos.
Considerando-se as deficiências do nosso ensino, os serviços educacionais têm boas perspectivas de crescer como fonte de emprego e trabalho. O mesmo se pode dizer dos serviços na área da saúde e dos serviços sociais que apresentarão forte demanda para cuidar de crianças e idosos assim como para planejar as comunidades e os governos. Turismo e entretenimento, igualmente, despontam como áreas promissoras em matéria de emprego. Contabilidade, auditoria e advocacia também prometem boas oportunidades para uma sociedade que precisa ser mais formalizada e mais controlada.
Neste campo vale uma digressão. Os últimos dez anos foram marcados por inúmeras mudanças que requerem maior controle tanto no campo da correta gestão de recursos público e privados como no campo da crise financeira. Os grandes escândalos que eclodiram na Bolsa de New York no final da década de 90, mostraram uma certa leniência nas práticas contábeis de grandes fundos. Isso, em si, demandou uma rigidez muito maior nos controles contábeis em todas as áreas.
A crise financeira por que passamos, por sua vez, está demandando por parte dos governos uma maior regulamentação das operações de crédito por parte de bancos e outras instituições financeiras. É bem provável que, ao sair da crise, o mundo estará muito mais regulamentado do que atualmente, o que vai exigir, novamente, a participação dos profissionais de contabilidade, auditoria e advocacia.
Além disso, novas áreas estão sendo abertas o que significa maiores oportunidades de trabalho para esses profissionais. Dentre elas convém citar a necessidade crescente de normas internacionais para atender a demanda da globalização assim como a expansão da contabilidade social, previdenciária, cultural e ambiental para atender a necessidade da nova cidadania. Sim porque, modernamente, os ativos mais valiosos das empresas não são os equipamentos mas sim a marca, a sua imagem, a boa reputação, enfim, o trabalho com responsabilidade.
Cresce também a demanda para o contador que planeja, que administra riscos, que participa das ações que levem as empresas a tomar decisões que redundem na sua prosperidade e na de seus empregados.
Como se preparar para esse novo mundo?
Como acontece todos os anos, ao se aproximar a época dos vestibulares, o meu e-mail fica repleto com as mesmas perguntas: O que devo aconselhar para o meu filho? Qual é a melhor profissão nos dias atuais? Quem tem mais chance de trabalhar?
Para todos, eu ofereço uma só resposta: apóie o estudante para seguir a profissão que ele diz gostar. Mas, uma vez aprovado no vestibular, convença-o de que, no mundo atual, vencerá quem for o melhor profissional.
O tempo do apadrinhamento está acabando. Os empregadores deixaram de contratar afilhados com base nos pedidos comovidos de seus padrinhos. Isso é coisa do passado, quando as empresas podiam passar suas ineficiências para os preços que, por sua vez, eram pagos por consumidores sem alternativa em uma economia fechada.
Isso acabou. O velho "pistolão" está morrendo. Há ainda alguns focos de nepotismo, é verdade, mas a imprensa e a sociedade estão no seu encalço, não dando folga a juízes e parlamentares que ainda tentam nomear na base do parentesco ou amizade.
Sugestões aos jovens
Hoje, o jogo virou. O mercado está se tornando cada vez mais competitivo. Preços sobrecarregados pela incapacidade ou preguiça de quem trabalha "de favor", levam as empresas à falência. Ninguém quer correr esse risco.
A - A primeira sugestão que posso dar aos jovens é essa. Seja qual for a profissão escolhida, prepare-se para ser bom nela. O sucesso vai brilhar para quem ficar acima da média.
Vivemos num tempo em que não basta ter um diploma. Aprender a conhecer é importante, sem dúvida. Mas, aprender a fazer é muito mais importante. Toda vez que alguém passar na porta de uma firma, que não emprega ninguém há vários anos, e disser ser capaz de resolver o problema da empresa, essa pessoa será imediatamente admitida.
Educação não cria empregos de forma direta. Mas cria de forma indireta, porque a educação atrai investimentos que, por sua vez, criam empregos.
O Brasil enfrenta neste ano (2008) uma grave falta de mão de obra qualificada. Muitas empresas estão impedidas de expandir devido à falta de pessoal adequado. O Brasil forma 30 mil engenheiros por ano, metade na área da engenharia civil. Faltam muitos engenheiros nas áreas de petróleo, mineração, meio ambiente, biotecnologia, informática, telecomunicações e outras.
A Coréia do Sul possui 50 milhões de habitantes – um quarto da população do Brasil – e, no entanto, forma 80 mil engenheiros por ano. A Índia, forma 200 mil e a China, 300 mil. O Brasil precisa formar, no mínimo, 50 mil engenheiros por ano.
Na Rússia, Canadá, Japão, Coréia do Sul, Irlanda, Dinamarca, Espanha, França, Austrália, Estados Unidos e outros países de vanguarda no comercio mundial, mais de 40% dos jovens possui formação universitária. No Brasil são apenas 8%.
A distância é enorme. Quem está na frente, não parou de investir. Ao contrário, investe cada vez mais, e de maneira eficiente. Trata-se de uma corrida em direção a um ponto móvel que se acelera de maneira intensa.
Não podemos atribuir as deficiências do nosso ensino à falta de investimentos. O que ocorre são investimentos mal direcionados. O Brasil investe cerca de 125% do PIB per capita em ensino superior, sem ter resolvido ainda os problemas básicos do ensino fundamental e médio. Os países avançados que já resolveram esses problemas, investem cerca de 40% no ensino superior. No Brasil, a atenção ao ensino fundamental e médio está atrasada.
Alguém pode indagar: com tanto investimento em ensino superior, por que essa falta de mão-de-obra especializada? Porque grande parte dos investimentos são sugados pela burocracia e outra parte é feita em áreas em que há excesso de profissionais.
Para os jovens, isso é um grande desafio. Com seu esforço, eles têm de compensar as deficiências do ensino. É isso que me leva a sugerir que se dediquem com afinco nos cursos que fazem. Para as oportunidades criadas e existentes, sai melhor quem se mostrar mais capaz. Tem mais chance, os que usam bem os conhecimentos que aprenderam.
B - E como conseguir essa competência? Basta ler o que o professor recomenda? Não. É preciso estudar, pelo menos, o dobro. É preciso se informar constantemente. É preciso ter dentro de si o vírus da curiosidade.
Muitos me dizem: ora, isso não é novidade. O mercado sempre esteve atrás de gente boa. É verdade. Mas a corrida tornou-se frenética com o aumento da competição.
As pesquisas são muito claras. As empresas não esperam contratar quem saiba tudo, mas buscam recrutar quem tem obsessão por aprender continuamente. E isso depende de cultivar o hábito de ler e se informar o tempo todo.
Sentar na sala de aula é fácil. Aprender é uma outra questão. Aprender para passar nas provas é insuficiente. É preciso aprender a pensar, a transformar informações em conhecimentos, em respostas, em propostas, em criação. A melhoria da distribuição da renda vem daquilo que é bem aprendido e não daquilo que é precariamente ensinado.
C - É inútil querer conhecer tudo. Evite submergir no meio de muita informação. Use a Internet com inteligência. Seja seletivo. Não queira ser apenas um bom especialista. O mundo atual exige especialidade e cultura. Sim, porque, nele, os profissionais terão de trabalhar em equipes, e conviver com pessoas de formação variada. O trabalho de hoje é eminentemente interdisciplinar.
D - Essa é outra sugestão que deixo ao jovem brasileiro: estude com afinco a sua profissão, e se informe a respeito das profissões da mesma família. Se você escolheu economia, leia sobre direito, administração e até de engenharia. Se você vai ser engenheiro, vá lendo economia, direito e até sociologia, lembrando ainda que, uma boa base de história não faz mal a ninguém. Não se atenha aos assuntos da faculdade. Vá além disso.
E - Mais uma sugestão. Entenda que o tempo dos seres humanos já não mais se divide entre trabalho e lazer. Cada vez mais, ele é composto de três partes: trabalho, lazer e aprendizagem. Apreenda a dosar o tempo. Coloque na sua agenda, as horas de estudo, as de lazer e as de trabalho. Busque o equilíbrio.
O vírus da curiosidade
Permitam-me contar-lhes um fato verídico. Dei uma palestra, recentemente, para cerca de 900 estudantes universitários de todo o Brasil, que queriam saber a quantas anda o mercado de trabalho para as profissões que escolheram - médicos, advogados, engenheiros, psicólogos, etc. Foi uma excelente reunião. Eles estavam ávidos por informações.
No final do evento, indaguei quantos haviam sido atingidos por uma triste greve das universidades federais que havia parado faculdades por 90 dias.
Mais de 90% levantaram a mão. Indaguei, em seguida, quantos, durante os dias de greve, estudaram em casa, 4 horas por dia. Ninguém moveu o braço!
Foi um quadro chocante. Eles perderam 360 preciosas horas de estudo, que poderiam ter sido usadas para atualizar as leituras, avançar o futuro, explorar outros campos do saber, e ajudar a prepará-los na longa caminhada para ser os melhores nas profissões escolhidas.
Apesar de ter uma escolaridade bem acima da média dos demais brasileiros de sua idade, aqueles jovens não foram preparados para estudar de forma autônoma. Não foram inoculados com o vírus da curiosidade.
Disciplina. Curiosidade. Amor ao conhecimento. Zelo no estudo. Garra. Esses são os ingredientes mais importantes para as pessoas se prepararem para o mercado de trabalho, em qualquer profissão. Isso conta mais do que a carreira escolhida, ou o diploma obtido.
As empresas do futuro estarão cada vez mais em busca das pessoas curiosas e interessadas em aprender o tempo todo. Sim, porque um quadro de pessoal que seja adaptável às mudanças, é a melhor vantagem comparativa para enfrentar um mundo de concorrência galopante.
Os critérios de seleção já mudaram bastante, e vão mudar mais. Já foi o tempo em que você tinha grandes chances no mercado de trabalho, quando anunciava ser engenheiro, administrador ou economista, formado por um boa faculdade.
Isso ainda conta, mas não é tudo. As empresas pararam de comprar profissões e faculdades. Elas estão atrás de respostas, e, sobretudo, de pessoas que enfrentam a realidade com uma clara, comprovada e indomável disposição de se apropriar do incompreensível.
Dois recentes relatórios de órgãos da ONU enfatizam de maneira inquestionável a importância da qualidade da educação para o progresso das pessoas e das sociedades contemporâneas. O primeiro é o "Relatório do Desenvolvimento Humano", elaborado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). O segundo é o "Relatório Mundial de Emprego", elaborado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Os dois estudos deixam claro que na sociedade atual só tem chance quem domina conhecimentos de boa qualidade. Isso tem pouco a ver com anos de escola; e menos ainda com diploma. Conhecimentos de boa qualidade são aqueles que tornam os seres humanos produtivos e criativos, facilitando a aquisição de mais e melhores conhecimentos. Eles exigem um grande investimento pessoal, além daquele que é feito pela escola e pelos professores.
Sem esse tipo de conhecimentos, as oportunidades de desenvolvimento individual e social permanecem inacessíveis.
A sociedade moderna precisa de cidadãos capazes para oferecer respostas rápidas às mudanças que ocorrem nos campos do trabalho, economia, política e cultura.
É claro que um grande número de atividades ainda exige conhecimentos bastante inferiores aos que são requeridos pelos setores de ponta. Mas esse quadro está mudando. A globalização, a revolução tecnológica e os novos modos de trabalhar tornam os seres humanos rapidamente obsoletos quando são mal preparados. Nada mais trágico do que a obsolescência humana. Nada mais dramático quando um chefe diz ao seu funcionário: "Estamos despedindo você porque aquilo que você sabe deixou de ser útil para esta empresa".
Não há outra saída: os países que desejam desfrutar dos benefícios da modernização têm de equipar seus povos com conhecimentos de alta qualidade. É isso que permite absorver inovações e criar outras. A alfabetização digital é essencial. A capacidade de se comunicar adequadamente é indispensável. A maleabilidade para trabalhar em grupo é fundamental.
O quadro da educação no Brasil
No campo da educação, o Brasil tem feito um grande esforço no campo quantitativo, aumentando matrículas e diminuindo a repetência e a evasão escolares. Nos últimos dez anos, reduzimos os que estão fora da escola de 16% para 2%. Os que completam o segundo grau passaram de 11% para 25%. As matrículas nas universidades aumentaram mais de 20%.
Tudo isso é louvável, mas está muito longe da qualidade dos conhecimentos tratada naqueles relatórios. Mesmo porque o Brasil possui ainda 10% de "analfabetos literais" e 60% de "analfabetos funcionais". Além disso, as pesquisas indicam que a maioria dos nossos alunos tem um domínio precário de linguagem, matemática e ciências. E não é para menos: a grande maioria dos professores das escolas de primeiro grau não passou pela universidade; há uma parcela de 9% que não concluiu sequer o segundo grau.
Pesquisas recentes (2008) mostram que os jovens que vão para o magistério apresentaram baixo aproveitamento nos cursos por que passaram. Bem diferente é o quadro nos países avançados. Os professores do ensino fundamental e médio da Finlândia são recrutados entre os 10% que apresentam melhor desempenho nos cursos que realizam. A Coréia do Sul recruta para o magistério, os 5% de melhor desempenho escolar.
Nenhuma escola pode oferecer um ensino que seja melhor do que os seus professores. É uma regra acaciana. Não é à toa que as escolas vêm apresentando uma piora nas provas de avaliação. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) mostrou que entre 2005 e 2007, cerca de 36% das escolas caíram de qualidade. Em uma escala que varia de 0 a 10, a maioria das escolas das capitais ficou abaixo da média nacional que foi baixíssima (4,2).
Em termos quantitativos, a nossa força de trabalho tem, em média, 7 anos de escola. Mas, se introduzirmos a dimensão qualitativa, esses 7 anos caem para 5 anos, o que nos deixa muito distantes de vários países de renda média na América Latina (Chile, Costa Rica, Uruguai e outros) e anos luz das nações mais avançadas. A força de trabalho da Coréia do Sul tem 10 anos de escola – e boa escola; a do Japão tem 11 anos, a dos Estados Unidos e a da maior parte da União Européia tem 12 anos de escola.
Essas nações não se contentam em educar bem as crianças e os jovens. Passaram a investir pesadamente na qualificação dos que já estão trabalhando. Na Inglaterra, 90% das empresas dão cursos aos seus empregados. Nos Estados Unidos até os trabalhadores temporários começam a ser treinados em serviço. A Noruega, primeiro colocado no Índice de Desenvolvimento Humano de 2001, aprovou a Lei no. 38, de 26/05/2000, segundo a qual, para cada dois anos de trabalho em determinada empresa, o empregado tem direito a se afastar, parcial ou totalmente, por até três anos, para se reciclar e evitar a obsolescência!
A precariedade do ensino tem conseqüências que vão além da baixa empregabilidade da mão-de-obra. Ela afeta também a criatividade da Nação, em vários campos, em especial, no tecnológico. Desde 2005, o Brasil vem caindo no ranking tecnológico mundial. O país aparece no 59º lugar entre 175 nações estudadas pelo Fórum Econômico Mundial. As falhas na educação e no ambiente regulatório são apontadas como as principais causas desse fiasco. Nos testes educacionais, o Brasil ocupa a 117ª embaraçosa posição e no ambiente regulatório está em 127º lugar.
Nos dias de hoje, não tem mais cabimento medir a capacidade de um povo pela quantidade de anos que passa na escola. O que conta é a qualidade da educação. O que importa é a escola que ensina o aluno a aprender sozinho e que introduz nos jovens o vírus da curiosidade. É isso que faz as pessoas terem gosto pela leitura e pela descoberta do novo.
No Brasil, um levantamento específico mostrou que só 30% dos brasileiros lêem livros, incluindo-se a Bíblia, textos religiosos, de culinária, informática e material em quadrinhos (Câmara Brasileira do Livro, 2001).
É isso que tem levado as grandes empresas do Brasil a realizar seus próprios programas de treinamento. Para enfrentar a grave falta de mão-de-obra especializada, empresas como a Vale, Petrobrás, Eletrobrás, Votorantim, Bradesco e várias outras mantêm milhares de funcionários nos cursos que são dados dentro das empresas ou fora, em convênio com universidades, ou em forma de seminários. Ainda bem que elas vêm usando esse importante expediente.
A formação de hábitos
Educação de boa qualidade tem um impacto expressivo na geração e difusão de inovações. Por isso, conclui o relatório do PNUD: "O desenvolvimento humano e o avanço tecnológico reforçam-se mutuamente, criando, como conseqüência, um círculo virtuoso de conhecimentos". O relatório da OIT vai na mesma direção: "A capacidade de transformar o conhecimento existente em novo conhecimento, constitui a principal vantagem comparativa de um povo".
Tudo isso se resume em uma só mensagem: as nações em desenvolvimento precisam alavancar rapidamente a qualidade da educação e promover uma grande guinada nas metodologias de ensino. Não basta transmitir informações. É preciso inocular nos alunos a capacidade de aprender continuamente.
Desejo apresentar mais uma sugestão aos jovens. Antes mesmo de se formar, fique de olho nas empresas que dão oportunidades para você "aprender a conhecer", "aprender a fazer", e "aprender a ser". Fique de olho em quem oferece oportunidades para "trainees" e estagiários.
E isso vem crescendo no Brasil, felizmente. Os dados do Instituto Euvaldo Lodi mostram que o número de estagiários aumenta mais de 25% ao ano. A experiência do CIEE (Centro de Integração Empresa Escola) mostra que 65% dos estagiários são contratados pelas empresas onde estagiaram.
Passar informações é apenas um dos elementos valorizados pelas empresas que buscam estagiários. Além de passar informações, elas buscam jovens que tenham facilidade para trabalhar em grupo, que demonstram um franco interesse por aprender continuamente, que sejam dinâmicos e curiosos e que dominam pelo menos duas línguas além do português: o inglês e a linguagem da informática.
A combinação de um espírito combativo com um bom comando de si mesmo é um capital extraordinário para vencer nesse mercado de trabalho que se transforma tão rapidamente. É isso que garante a empregabilidade.
Sinto que os jovens brasileiros estão precisando formar hábitos que são valorizados no mercado de trabalho. O principal de todos os hábitos é o da leitura. Essa é a chave do sucesso para qualquer profissão.
Pesquisas recentes (2008) mostram que os estudantes brasileiros lêem apenas 1,7 livro por ano (afora os didáticos). Nos Estados Unidos, os estudantes lêem, em média, 5,5 livros por ano; na Inglaterra, 5; e na França 7.
Para a população total dos países avançados, porém, esses números estão subestimados. Basta entrar num metrô, trem ou ônibus para ver que os passageiros não tiram os olhos dos livros. Nos feriados prolongados, as livrarias da Europa ficam entupidas de compradores. A própria produção de livros indica que se lê muito nos países avançados. Vejamos os fatos.
Segundo os dados da Câmara Brasileira do Livro, no ano 2000, foram publicados 50 mil títulos e 329 milhões exemplares, entre novos e reedições. Em 2006, foram apenas 46 mil títulos e 320 milhões exemplares. Fomos para trás.
Nos Estados Unidos, no mesmo ano, foram produzidos 172 mil títulos e 3,1 bilhões de livros! A população americana (304 milhões) é 1,5 vez maior do que a brasileira (194 milhões). Mas o número de livros publicados é dez vezes maior. É uma diferença colossal!
Além do mais, as bibliotecas americanas são muito mais numerosas e freqüentadas do que as brasileiras, o que significa dizer que o mesmo livro é lido por muito mais gente. Este é o lado mais sombrio de um povo que lê pouco e precisa trabalhar na sociedade do conhecimento.
As boas escolas conseguem informar bem. Poucas, porém, sabem como formar nos seus alunos o hábito da leitura. A maioria das famílias também tem dificuldade nesse campo.
Por isso, resta aos próprios profissionais, desenvolverem uma estratégia para compensar as deficiências da escola e da família nesse terreno. A vocês, caros participantes deste encontro, sugiro que meditem sobre isso e tomem as devidas providências para instalarem dentro de si, os indispensáveis ingredientes para vencer a competição dos mercados de trabalho dos dias atuais e do futuro.
A formação da cidadania
Mas, além de bons profissionais, o mundo atual está exigindo bons cidadãos.
O que é cidadania? A cidadania é o exercício de deveres e direitos individuais, respeitados os deveres e direitos da coletividade.
Notem que estou colocando os deveres antes dos direitos e isso não é acidental.
James Madison dizia que a cidadania começa com o respeito que os governados precisam ter pelos governantes.
Ela amadurece quando os governantes passam a respeitar os governados.
E chega à sua plenitude quando os governados passam a controlar os governantes.
O controle dos governantes é o último estágio da cidadania e isso depende enormemente do exercício de responsabilidades individuais.
Há uma grande diferença entre ser membro de uma sociedade e ser cidadão dessa sociedade. Os membros ficam sentados na arquibancada, aplaudindo ou criticando. Os cidadãos jogam o jogo.
No Brasil, ainda somos mais membros do que cidadãos. Estamos sempre prontos para criticar. E ocupados demais para assumir as nossas responsabilidades individuais.
Uma sociedade baseada em cidadania é muito trabalhosa porque o exercício das responsabilidades individuais exige ação. Permitam-se contar aqui o que fiz na eleição de 2002.
Tradicionalmente, depois de examinar superficialmente a propaganda eleitoral que me enviavam, eu jogava a correspondência no lixo.
Em 2006, repeti o que fiz em 2002. Respondi a todos os candidatos a deputado federal e senador que me mandaram santinhos, com a seguinte carta:
Prezado candidato:
Fiquei honrado ao ser considerado um seu eleitor potencial. Como a única arma democrática que possuo é o meu voto, antes de me decidir, gostaria que você me respondesse às seguintes questões:
1. Gerar empregos depende muito de aumentar nossas exportações e, para tanto, é necessária uma reforma completa do atual sistema tributário. Que tipo de reforma você vai defender no Congresso Nacional? Descreva o impacto de sua proposta no campo do emprego.
2. A geração de emprego depende também de uma reforma completa do nosso sistema de relações do trabalho. Que tipo de reforma você pretende defender? Demonstre o seu reflexo da criação de postos de trabalho.
Se você não me responder, esqueça o meu voto, assim como o voto de todas as pessoas às quais vou mostrar esta carta e conversar a respeito da sua conduta.
Se você decidir me responder, comece por fornecer o número do seu telefone celular, pois desejo conversar muito consigo antes e depois da eleição.
Insisto no celular, porque gostaria de evitar ligar para aqueles telefones atrás dos quais se põem batalhões de secretárias para dizer que você está em reunião e não pode atender... Atenciosamente, José Pastore.
Enviei cerca de 30 cartas. Deu trabalho, mas não muito. O modelo estava gravado no computador. A minha tarefa foi simplesmente de personalizar a carta e o envelope, colocando-os no correio.
Francamente, achei pouco trabalho em vista do tanto que podemos fazer para melhorar a nossa democracia.
Como em 2002, recebi apenas 3 respostas. Mas não desanimei. Vou repetir o processo em todas as eleições. E, no seu ínterim, envio e-mails e fax para os parlamentares todas as semanas, fazendo perguntas e apresentando propostas. Quando não me respondem, envio um segundo tipo de correspondência que demonstra a minha disposição de informar amigos e parentes sobre o desprezo daquele parlamentar para com um cidadão que pratica a cidadania.
Assumir deveres para desfrutar direitos
Por isso, caros jovens, chegou a hora de entrarmos em campo. De jogar o jogo. E decidirmos a partida. Para tanto, é indispensável assumirmos nossa responsabilidade individual fazendo um balanço adequado entre deveres e direitos. A nossa Constituição federal já está desbalanceada nesse aspecto porque contém 76 referências a direitos, 4 a deveres, 2 à produtividade e uma à eficiência. Precisamos, com o nosso esforço, corrigir esse viés.
Neste mundo em que só se fala em direitos, temos de demonstrar aos jovens que jamais se chegará aos direitos se não passarmos pelos deveres.
Nós sabemos como transmitir direitos. Mas ainda não sabemos como inocular deveres. Precisamos exercitar. E adquirir essa capacidade.
Para isso, é importantíssimo dar bons exemplos. O mundo de hoje está desvalorizando a importância dos exemplos. Por isso, os jovens ficam sem referências e ignoram a hierarquia dos valores.
Muitos pensam que o mais correto é não ter hierarquia. O mais grave é que os adultos os seguem, por falta de uma concepção amadurecida da importância da responsabilidade individual e do exemplo na formação de atitudes, valores e comportamentos que são básicos para o exercício da cidadania.
Como podem as crianças estudar depois do jantar, se os seus pais ficam se divertindo na televisão com novelas que beiram a pornografia? Que tipo de exemplo é esse?
Afinal, o que a família deseja dos filhos? Será que ela acha que a escola pode compensar todos os maus exemplos difundidos no lar?
A preparação para assumir responsabilidades é o ingrediente mais essencial para a formação da cidadania.
Não tenham ilusões. A vida dos cidadãos é muito mais trabalhosa do que a vida dos espectadores.
Para ser cidadão, não basta criticar. É preciso participar. Não basta votar. É preciso trabalhar para controlar as ações dos governantes.
Não basta exigir disciplina por parte dos outros. É preciso dar exemplo com a nossa auto-disciplina.
A sociedade moderna precisa construir mais e melhores pontes entre escola, trabalho e cidadania.
A escola está sendo desafiada a desenhar programas educacionais que se enquadrem nas características da vida moderna.
O desenvolvimento do senso de responsabilidade individual é a chave da autonomia e da liberdade dos seres humanos. É isso que vai facilitar o nosso envolvimento com os temas maiores da sociedade.
É isso que vai nos permitir controlar os governantes e chegar a um tempo de progresso. De justiça. De pragmatismo. De bem estar.
Na minha vida de professor, o que mais me gratificou foi o fato de lecionar anos a fio aos calouros de 17, 18 e 19 anos. Trata-se de jovens que entram na universidade com muita curiosidade, interesse e esperança. Eles chegam com uma chama de saber que vale a pena ser cultivada.
Sempre lecionei às 7:30 hs. da manhã. Sistematicamente, eu entrava na sala de aula às 7:25 hs. e fechava a porta, com chave, às 7:30 hs.
As reclamações no início do semestre eram sempre as mesmas:
"Professor, atrasei-me um minuto e perdi a aula. Isso não é justo. Eu não fiz de propósito. O dia estava chuvoso e o trânsito, terrível...".
Depois de duas ou três semanas de aula, os alunos pediam uma reunião para discutir o assunto – ao que eu atendia, fora do horário de aula.
Os anos foram passando, os alunos eram sempre diferentes, mas o pedido era sempre o mesmo. Eles queriam uma tolerância de 5 minutos.
Pacientemente, eu procurava examinar as vantagens e desvantagens daquela medida.
A primeira reunião nunca era conclusiva. Eu mesmo procurava deixar algumas questões para eles pensarem:
O que eu deveria fazer com o aluno que chegasse às 7:36 hs.?
Perguntava ainda se não havia o risco de todos os alunos considerarem 7:35 hs. como horário normal. E assim por diante.
Através de conversas pausadas, íamos falando sobre hábitos, condutas, valores, atitudes, etc.
E, evidentemente, falava muito sobre os meus próprios hábitos.
Começava por enfatizar o respeito que tinha por eles ao dizer:
"Vocês são jovens inteligentes, cheios de vida e movidos pela curiosidade e vontade de aprender. Vocês merecem o melhor de mim. Por isso, chego sempre às 7:00 hs., subo para a minha sala, faço uma revisão final da aula anteriormente preparada, desço às 7:20 hs., tomo um café no bar da faculdade e entro na sala às 7:25 hs."
"Preciso cultivar a calma e a tranqüilidade para fazer um bom papel", dizia eu. "Aos que estão na sala eu dou toda a atenção. Respondo todas as perguntas. Entrego-me inteiramente a eles, num clima de máxima interação e intimidade".
Perguntava, então, se a eles parecia justo que esse clima fosse interrompido por retardatários. A resposta sempre foi não. E isso era um bom começo.
Em seguida, dizia a eles que, nos meus 35 anos de ensino, atrasei-me 3 vezes. Só que, por moto próprio, nunca entrei na sala de aula e sempre pedi para a universidade descontar o meu dia de trabalho por considerar esse lapso como um profundo desrespeito aos alunos.
Para finalizar, perguntava aos membros da reunião por que eu, com os meus 60 anos podia chegar às 7:00 hs. e eles com seus 18 anos não podiam chegar às 7:30 hs.?
Era uma longa troca de exemplos de condutas que, por fim, convencia os alunos a chegar às 7:20 hs. e aproveitar a minha oferta de pagar um café para todos para, com calma e tranqüilidade, começarmos a aula, todos juntos, às 7:30 hs.
O ensino dos deveres dá muito trabalho. Os métodos sofisticados pouco ajudam. A formação das responsabilidades individuais depende de coisas simples, de bons exemplos.
É através dos exemplos que as pessoas formam hábitos arraigados e passam a exigir igualdade de tratamento, neste caso, com muita moral, pois elas mesmas praticam o que desejam antes de reivindicar.
Afinal, os seres humanos não são objetos. São cidadãos de opinião. De vontades. De valores. De atitudes. De deveres. E de direitos.
O mundo avança de maneira veloz. E essa velocidade aumentará cada vez mais. De nada adianta dizer: parem o mundo que eu quero descer. Para nós, só resta nos adaptarmos à velocidade do mundo.
Será que estamos no fim de um processo de mudança? Penso que não. Esse é apenas o começo. Estamos na fase de cobrar.
Mas cobrar, além de dar trabalho, exige responsabilidade. Exige cidadania. Cidadania é isso. É cumprir com o meu dever para reivindicar o meu direito.
Nós mestres temos de difundir os direitos, é verdade. Porém, o mais urgente, no momento, é difundir os deveres.
Só assim poderemos contar com instituições sustentadoras da vida democrática.
As instituições precisam ser aperfeiçoadas de modo a criar um ambiente para que o povo exercite deveres e direitos.
Para que os protagonistas da produção e do trabalho venham a deliberar mais sobre suas próprias vidas, sem a interferência de terceiros.
Essa é a essência das mudanças que nos esperam. Em todas as áreas. Na previdência. Na saúde. No trabalho. Na política partidária. E na Justiça.
Repito. Isso dá trabalho. Muito trabalho. Mas é a única maneira de se construir um mundo melhor.
A grande tarefa dos próximos anos é nos organizarmos para isso. Os governantes terão de respeitar os governados. E os governados terão de controlar os governantes.
Um governo ativo só surgirá quando a Nação tiver cidadãos ativos. Não existe governo ativo com cidadãos passivos. Não existe governo ágil com cidadãos acomodados.
Um governo ativo é aquele que responde às nossas demandas. Não é um "senhor", mas um parceiro.
O tempo de espera acabou. Ao governo não basta simplesmente mudar ministros. É preciso mudar políticas. Mudar de atitude. Mudar de conduta. Precisamos de um governo que reme menos e dirija melhor.
E isso depende do exercício da cidadania. Depende do trabalho dos interessados. Enfim, depende de nós.
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