Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/05/2001
Racionamento, emprego e salário
Com um corte de 20% no consumo de energia elétrica no sudeste, nordeste e centro-oeste, e pesadas despesas para os desobedientes, não resta dúvida que isso vai afetar os empregos e os salários ao longo dos próximos meses – ou anos.
A intensidade do desastre é difícil de estimar. A Fundação Getúlio Vargas calcula que esse corte produzirá uma redução do PIB anual de 1,5% e a não criação de aproximadamente 800 mil empregos. Se somarmos a isso os empregos que serão destruídos pelas empresas que, tendo de cortar a produção, vendas de lucros terão de enxugar seus quadros, a situação é ainda mais dramática.
É verdade que, se for acelerada a construção de novas usinas e linhas de transmissão, surgirão novos postos de trabalho no setor da infra-estrutura. Mas, dificilmente, eles conseguirão compensar as dispensas a que muitas empresas serão forçadas a fazer.
Por força da rigidez da nossa legislação trabalhista, as medidas nos campos do emprego e salário serão dolorosas e conflitivas. A CLT deixa muito pouco espaço para as partes serem cordatas e fazerem adaptações.
Algumas empresas poderão evitar dispensas, negociando com seus empregados o uso do "banco de horas" – que permite compensação das horas não trabalhadas dentro de um ano. Mas a crise de energia será de longa duração, pelo menos dois anos. Por isso, o banco de horas pouco ajudará, pois ultrapassa-se o limite de 12 meses. Mas, adiantará estendê-lo para 24 meses? As empresas que produzem menos e vendem pouco, agüentarão pagar salários integrais para seus funcionários ficarem em casa durante dois anos? É claro que não.
O que mais pode ser feito dentro da CLT? Sendo a crise de energia um motivo de "força maior", capitulado nos artigos 501 a 504 daquela lei, os salários poderão ser cortados por iniciativa da empresa em até 25% (respeitado o valor do salário mínimo), e mais do que isso, por meio de negociação com os sindicatos, com amparo no Inciso VI do artigo 7º da Constituição Federal que diz: o salário é irredutível, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo. Essa mecânica é polêmica e deverá gerar muitas ações trabalhistas.
Reduzir salários sempre provoca estragos de grandes proporções. Muitos trabalhadores não terão outra alternativa. Pior é perder o emprego num País às escuras, onde é difícil encontrar outro. Do lado das empresas, muitas farão concessões para os bons funcionários aceitarem a redução dos salários, pois para elas também é difícil encontrar pessoal qualificado no momento da reativação.
Mas haverá empresas para as quais a redução de salários não resolverá o problema, tendo que apelar para o corte de emprego. No caso de força maior, a CLT permite às empresas fazerem demissões pagando apenas 50% da indenização de dispensa. A propósito, esta é a pior hora de se elevar a referida indenização de 40% para 50%, como quer o governo.
Quando se somam todas as verbas rescisórias, dispensar no Brasil é caro. Nem todas as empresas terão o numerário para demitir legalmente. Muitas demandarão pagamentos parcelados. Mais conflito trabalhista.
Outras poderão ir mais longe, e invocar o artigo 486 da CLT diz: "No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará à cargo do governo responsável". Mais conflito entre a sociedade e o Poder Público.
Não sou jurista, o que me leva a pedir ao leitor a máxima cautela no uso dos cenários traçados. Mas a lei trabalhista brasileira é truculenta nas horas de emergência. Ela impede que empregados e empregadores negociem o que é mais vantajoso. Essa impiedosa rigidez faz com que os trabalhadores e suas famílias arquem com um colossal sacrifício.
Quem sabe a perversidade da crise - que, oxalá não seja tão grave quanto se afigura - leve os nossos legisladores a aproveitar a dureza dos fatos para modernizar as instituições do trabalho no Brasil, aumentando o espaço de livre negociação, para que as partes possam fazer as adaptações mais adequadas em momentos como esse, e outros que são exigidos pelo mundo da concorrência e da globalização. É numa hora dessas que fica escancarada a virtude dos sistemas mais ágeis dos países nos quais o negociado prevalece sobre o legislado.
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