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XI Encontro Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, ONEDEF, Recife, 05/09/2000

O Trabalho dos Portadores de Deficiência

Durante muito tempo, os portadores de deficiência física, sensorial ou mental foram cuidados pela caridade e filantropia. Por ignorância, preconceito e medo, as sociedades evitavam o contato e bloqueavam o seu trabalho. Ainda hoje, devido à persistência de desinformação e inadequação das condições de arquitetura, transporte e comunicação, muitas pessoas talentosas e produtivas são afastadas do mercado de trabalho.

Nada justifica tratar os portadores de deficiência dessa forma. Ao contrário, com a elevação do seu nível educacional e o advento das tecnologias de telecomunicações e informática, o número dos que têm condições de produzir com qualidade, aumenta a cada dia. A maioria apresenta limitações superáveis mediante arranjos institucionais e acomodações no trabalho.

Modernamente, é consenso que a criação de condições adequadas para a vida dos portadores de deficiência é de responsabilidade de toda a sociedade. O Brasil possui vários dispositivos legais de âmbito federal, estadual e municipal dentro dessa filosofia. Mas entre legislar e acontecer, vai uma grande distância.

No Brasil, há cerca de 16 milhões de pessoas que possuem algum tipo de deficiência física, sensorial ou mental. Dentre os 9 milhões que estão em idade de trabalhar, apenas um milhão trabalha - 11% - enquanto nas nações avançadas, isso ultrapassa os 30%. Quando trabalham, a grande maioria está na informalidade e realizando atividades precárias, ganhando pouco e sem segurança.

O Decreto no. 3.298 (20/12/99) estabelece uma política para a integração dos portadores de deficiência na sociedade e no trabalho. Embora esse instituto preveja que a inserção no mercado de trabalho possa de dar de variadas maneiras (colocação competitiva, colocação seletiva e trabalho por conta própria), a sua espinha dorsal repousa na reserva de postos de trabalho para portadores de deficiência nas empresas com 100 ou mais empregados, com base nas seguintes cotas: I - 100 a 200 empregados, 2%; II - de 201 a 500, 3%; III - de 501 a 1.000, 4%; IV - mais de 1.000, 5%.

Do ponto de vista da dinâmica e das leis do mercado de trabalho, será essa a melhor forma para colocar os portadores de deficiência trabalhando?

Muitos países usam o sistema de reserva de mercado com base em cotas. Mas nenhum teve sucesso com base exclusiva em cotas. As leis do mercado não seguem automaticamente as leis do parlamento. Pela natureza de suas atividades, muitas empresas não têm condições de cumprir as cotas. Outras, pelo seu tamanho avantajado, não encontram portadores de deficiência em número e capacitação suficientes para preencher sua cota. Há ainda os casos de empresas que não têm recursos para fazer as necessárias adaptações para receber pessoas que exigem cuidados especiais.

Por isso, as cotas, sozinhas não criam postos de trabalho. Em muitos casos tornam-se até contraproducentes. Quando a empresa admite porque a lei obriga admitir, os portadores de deficiência são alocados em setores marginais, passando a ser estigmatizados pelos próprios colegas - o que é desumano e indigno.

Não é para isso que a lei das cotas foi elaborada. Não era essa a intenção dos legisladores. Ademais, a lei das cotas, sozinha não consegue superar os subterfúgios que muitas empresas utilizam quando não querem contratar. O mais comum é o de elevar substancialmente os requisitos de qualificação para a vaga em aberto. Nesse caso, o número de candidatos, "naturalmente", se restringe e poucos serão admitidos.

Por isso, o grande desafio para quem lida com o mercado de trabalho é como remover os desestímulos e criar estímulos que, por sua vez, venham a levar as empresas s se interessar pela contratação de portadores de deficiência. Não se trata de revogar a lei das cotas mas sim de aperfeiçoá-la.

A ampliação da capacidade de andar, pensar, apreender, ver e falar dos portadores de deficiência depende, em grande parte, da remoção das barreiras que encontram. Em muitos casos, a deficiência desaparece com a simples remoção de obstáculos. É o que acontece, por exemplo, com quem usa cadeira de rodas e passa a dispor de transporte adequado e arquitetura condizente, como boas rampas de acesso. Na prática, essa pessoa deixa de ser deficiente.

Dentro de certos limites, é possível dizer que deficiência não é um problema individual - é uma decorrência social. Portanto, nada mais indicado do que mobilizar um grosso calibre de forças sociais para melhorar as condições de vida dos portadores de deficiência.

Mas será que a simples promulgação de um sistema de cotas e uma atividade policial em cima das empresas são suficientes para remover barreiras e criar postos de trabalho? Os países que tentaram esse caminho fracassaram, e precisaram partir para outros mecanismos como é o caso da Alemanha, França e Itália. Outros desistiram por completo do sistema de cotas, como é o caso da Inglaterra. Há ainda os que nunca tentaram, e rejeitam abertamente o sistema de cotas como é o caso dos Estrados Unidos e Austrália, dentre outros.

As dificuldades geradas pelo sistema de cotas e o seu limitado papel estimulador na criação de postos de trabalho levaram muitos países da Europa (como, por exemplo Alemanha e França) a procurar outros caminhos, dentre eles, o da “cota-contribuição” e o da contratação através de terceiros.

Nesses países, as empresas que, por qualquer motivo, deixam de contratar os portadores de deficiência previstos nas cotas, ficam obrigadas a recolher para fundos especiais, um percentual do que gastariam com aquela contratação ou, alternativamente, contratam através de outras empresas (através de terceirização) e, em última instância, através de instituições especializadas em “trabalho protegido” - alternativa pouco recomendável.

Esses fundos são geridos por representantes do governo, empresas e portadores de deficiência. Na maioria dos casos, os recursos são usados para custear três tipos de atividades: (1) os serviços de habilitação e reabilitação; (2) a manutenção de instituições de e para portadores de deficiência; (3) a estimulação das empresas (através de empréstimos e doações) com vistas a ampliar o seu interesse na contratação de portadores de deficiência. Os estudos mostram que as empresas que têm boas experiências com portadores de deficiência, tendem a contratá-los continuamente. Daí a importância de se remover os desestímulos à contratação.

Ao dispor de várias alternativas, as combinações vão se sucedendo e o mercado de trabalho para os portadores de deficiência vai se ampliando. Há casos em que, uma parte da cota é admitida e trabalha no recinto da empresa; outra trabalha em empresas a ela relacionadas ou em instituições de e para portadores de deficiência.

O Brasil pode melhorar muito o sistema atual. As políticas que tratam desse assunto são muito pobres. Elas se concentram, do lado público, na concessão de benefícios previdenciários e, do lado privado, no sistema de cotas.

As experiências dos países mais avançados que tiveram bons resultados mostram ser essencial uma boa articulação entre ações públicas e privadas nos campos da educação, qualificação, conscientização, habilitação, reabilitação, estimulação de contratações, retenção no mercado de trabalho, ajuda à volta ao trabalho, esquemas de financiamento para quem trabalha por conta própria, flexibilização dos sistemas de seguros, apoio ao trabalho protegido e várias outras. É um grande complexo de ações nas quais é maximizada a sinergia da combinação. Cotas, desacompanhadas das medidas acima, são impotentes para ampliar o trabalho dos portadores de deficiência.

Por isso, em lugar de simplesmente policiar e punir, o Brasil precisaria praticar políticas voltadas para a remoção de barreiras e estimulação das empresas para contratar portadores de deficiência. Dentre os principais problemas a serem atacados por políticas combinadas destaco os seguintes:

1. A primeira grande barreira é a educação. Segundo a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, contando-se todas as escolas públicas e particulares e todas as séries, há, no Brasil, pouco mais de 300 mil alunos portadores de deficiência, sendo que apenas 3 mil estão no ensino médio (MEC, Educação para Todos, 2000).

É verdade que a grande maioria dos portadores de deficiência pode ser atendida pelas escolas comuns, não havendo necessidade de educação especial. Mas, como se sabe, a grande maioria dos portadores de deficiência provém de famílias mais pobres, o que constitui um entrave adicional para freqüentarem aquelas escolas.

Pelo atual sistema de cotas, uma estimativa conservadora indica que as empresas brasileiras teriam de contratar imediatamente entre 550 e 600 mil portadores de deficiência, habilitados ou capacitados. Onde encontrá-los? Esse problema só pode ser resolvido, é claro, através de programas que ampliem o seu acesso à educação e à formação profissional.

2. Em tudo o que fazem, as empresas costumam participar de novos processos de modo gradual, na base de projetos-piloto, visando, com isso, tatear o mercado e ganhar segurança. Por isso, para complementar a contratação direta, seria útil apoiar as empresas (em especial, as que têm cotas de 4% e 5%), que se disponham a entrar em parceiras com outras empresas para, em conjunto, contratarem mais portadores de deficiência.

3. Levando-se em conta a tendência mundial de encolhimento do emprego fixo, é aconselhável apoiar o trabalho por conta própria, a subcontratação, o teletrabalho e o “telecommuting”, em parceria com empresas que possuem cotas elevadas, e difíceis de serem cumpridas. Trabalhar nesses novos arranjos laborais é uma tendência moderna, que não deve ser confundido com o afastamento dos portadores de deficiência do mercado de trabalho geral.

4. Para viabilizar os arranjos acima sugeridos e, ao mesmo tempo, assegurar o cumprimento de sua responsabilidade social, seria útil também criar um sistema de cota-contribuição dentro do qual as empresas pudessem exercer a opção de contratar diretamente; articular-se com instituições e empresas que fazem a desejada contratação; ou, finalmente, recolher recursos para um fundo que viria a ser usado, com prioridade, para educar e qualificar pessoas e estimular o setor privado a remover barreiras.

5. Por maiores que sejam os esforços da sociedade, os casos mais severos de deficiência terão de ser apoiados fora do mundo do emprego - em instituições de trabalho protegido. Mas, neste caso, todo cuidado é pouco. O ideal é a integração dos portadores de deficiência no mercado de trabalho regular pois, as instituições de trabalho protegido são freqüentemente sujeitas a uma fácil e perniciosa deterioração social. Só em casos especiais.

Enfim, é urgente explorar as vantagens comparativas de políticas combinadas. O centro de todas as ações nesse campo são os seres humanos que têm suas vidas em situações complexas. Não basta baixar decretos paternalistas, aprovar leis ambiciosas e aperfeiçoar o policiamento. O fundamental é criar mecanismos que sejam eficazes na redução e eliminação das barreiras.

O Brasil tem pela frente uma longa lista de providências a serem tomadas para poder oferecer aos portadores de deficiência a vida digna que eles tanto merecem. Perder o medo de combinar estratégias é um importante primeiro passo.