Publicado em O Estado de S. Paulo, 03/08/1999
Reservas de mercados de trabalho
Na economia moderna, é forte o alarido contra as reservas dos mercados de bens e serviços - informática, telecomunicações, medicamentos, etc. Pouco se fala, porém, sobre as reservas dos mercados de trabalho.
Há reservas justificáveis. Por exemplo, ninguém questiona que a medicina deva ser exercida por médicos. Afinal, a sociedade precisa de proteção no campo da saúde, o que também se aplica aos enfermeiros, aeronautas, advogados, engenheiros e outros
profissionais.
Mas, há casos bastante questionáveis. Já passaram pelo Congresso Nacional projetos de lei que visavam regulamentar as profissões de peão de rodeio, manequim,
massagista, "ombudsman", tatuador, terapeuta holístico, camelô, carregador de malas em aeroportos e vários outros.
Há também restrições de difícil compreensão. Pela lei em vigor, o corretor de imóveis de São Paulo não pode exercer a sua profissão em Minas Gerais, sem a devida
autorização do conselho daquele estado. Um músico do Rio de Janeiro só pode tocar em Brasília depois de obter permissão e pagar uma taxa à ordem dos músicos do Distrito Federal.
A regulamentação das profissões é o caminho que os grupos interessados
seguem para fazer reservas no mercado de trabalho. Essa regulamentação é conseguida e garantida por leis, decretos-leis, decretos, instruções normativas, portarias e resoluções emanadas dos poderes públicos e dos conselhos profissionais.
No Brasil, há quase 150 de profissões regulamentadas e que são regidas por regras especiais estabelecidas pelos institutos acima referidos (José Augusto da Palma,
Profissões Regulamentadas, Editora LTR, 1997). Dessas, cerca de 70
profissões, além de obedecer tais regras, só podem ser exercidas por um
grupo seleto de profissionais.
Além da regulamentação, há subdivisões profissionais que estabelecem
reserva de mercado dentro de um nicho previamente reservado. Veja o
seguinte exemplo. Digamos que uma siderúrgica esteja instalada em uma
comunidade onde há grande médico pneumologista em condições de atuar com competência na prevenção e solução dos problemas ligados à poluição. Pois bem, aquela empresa só poderá se beneficiar dos conhecimentos daquele profissional se ele for "médico do trabalho". Sem a devida "carteirinha"..., nada feito.
Nos Estados Unidos e na Europa há também uma infinidade de profissões
regulamentadas. Os seus profissionais só podem exercê-las mediante
comprovação de competência e licença de trabalho - é o credenciamento profissional.
Por exemplo, um eletricista para abrir uma firma de prestação de serviços nos Estados Unidos tem de passar por um exame realizado por comissão de âmbito estadual para confirmar a sua competência, evitando-se, assim, que um aventureiro qualquer, que se diz eletricista, adentre a intimidade de um domicílio para fazer as suas peripécias para, em seguida, sumir - como ocorre em um País que conheço bem...
No caso citado, há, sem dúvida, uma reserva de mercado de trabalho para os profissionais credenciados. O que me intriga, no Brasil, é a presença da regulamentação e a ausência do credenciamento. Entre nós, a garantia da reserva do mercado é mais impor-tante do que a competência na profissão.
Por quê há tanta regulamentação? Nesse processo, tem destaque o interesse dos que, no fundo, querem regulamentar uma profissão para poder organizar os conselhos profissionais e, através deles, recolher polpudas contribuições. Há conselhos que cobram R$ 400,00 por ano de uma categoria que possui 500 mil profissionais! Convenhamos, R$ 2 bilhões anuais, "tax free", é uma receita razoável...
Não é a toa que as sucessões das diretorias dos grandes conselhos
profissionais são sempre marcadas por campanhas eleitorais que se asseme-lham muito mais a disputas partidárias do que a cruzadas em favor da competência
profissional. Regulamentação para proteger a sociedade é uma coisa.
Regulamentação para construir fortunas, é outra.
A reserva de mercados de trabalho é um assunto velho. Na Idade Média, as corporações de ofícios tornaram-se a principal maneira de organizar o trabalho dos
ceramistas, marceneiros, ferreiros, pedreiros, escultores, etc. Elas se
atribuíam o direito de definir as profissões, cobrar taxas e aplicar multas - tudo aprovado pelo Estado.
Você vê alguma semelhança entre as corporações medievais e os conselhos profissionais atuais? Na França e Inglaterra, as taxas das corporações eram comodamente cobradas pelos coletores de impostos do Poder Real. Você já notou, por acaso, a presença do brasão das Armas República estampado na guia de recolhimento dos conselhos profissionais?
As corporações medievais obtiveram do Estado o poder de estabelecer seus próprios tribunais para julgar e punir. Você já observou que os conselhos profissionais,
através de julgamento próprio, podem até cassar o seu diploma?
A receita das corporações medievais eram usadas para cobrir as despesas de hospitalização e funeral dos associados, as pensões das viúvas e, ... como ninguém é de ferro... para pagar as festas e cerimônias levadas a efeito pelas corporações.
Bem, vou encerrar por aqui, sem fazer mais perguntas, deixando para o
próximo artigo, uma análise sociológica dos conselhos profissionais no Brasil atual.
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