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Publicado em O Estado de S. Paulo, 14/03/00

Trabalho dos portadores de deficiência - II

José Pastore

A vida dos portadores de deficiência tende a ser sofrida. O sofrimento advém da combinação de suas limitações com os obstáculos criados pela sociedade.

A capacidade de andar, pensar, apreender, ver e falar dos portadores de deficiência depende, em grande parte, das barreiras que encontram. Em muitos casos, a deficiência desaparece com a simples remoção de obstáculos. É o que acontece, por exemplo, com quem usa cadeira de rodas e passa a dispor de transporte adequado e arquitetura condizente, como boas rampas de acesso. Na prática, essa pessoa deixa de ser deficiente.

Dentro de certos limites, é possível dizer que deficiência não é um problema individual – é uma decorrência social. Portanto, nada mais indicado do que mobilizar um grosso calibre de forças sociais para melhorar as condições de vida dos portadores de deficiência.

O Brasil possui um arcabouço legal bastante alentado nesse campo. Mas, no fundo, as políticas se concentram, do lado público, na concessão de benefícios previdenciários e, do lado privado, na obrigatoriedade das empresas contratarem uma cota de portadores de deficiência que varia de 2% a 5%, de acordo com o número de empregados.

Bem diferentes são as estratégias dos países mais avançados. Neles, há uma poderosa articulação entre ações públicas e privadas nos campos da educação, qualificação, conscientização, habilitação, reabilitação, estimulação de contratações, retenção no mercado de trabalho, ajuda à volta ao trabalho, esquemas de financiamento para quem trabalha por conta própria, flexibilização dos sistemas de seguros, apoio ao trabalho protegido e várias outras.

No que tange ao papel do setor privado do Brasil, o sistema de cotas é insuficiente, como comentado em artigo anterior (O Estado de S. Paulo, em 20/02/00). Cotas, desacompanhadas das medidas acima, são impotentes para ampliar o trabalho dos portadores de deficiência.

Em lugar de simplesmente policiar e punir, o Brasil precisaria praticar políticas voltadas para a remoção de barreiras, das quais destaco as seguintes:

1. A primeira grande barreira é a educação. Segundo a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, contando-se todas as escolas públicas e particulares e todas as séries, há, no Brasil, pouco mais de 300 mil alunos portadores de deficiência, sendo que apenas 3 mil estão no ensino médio (MEC, Educação para Todos, 2000). Pelo atual sistema de cotas, uma estimativa conservadora indica que as empresas brasileiras teriam de contratar imediatamente cerca de 600 mil portadores de deficiência, habilitados ou capacitados. Onde encontrá-los? Esse problema só pode ser resolvido, é claro, através de programas que ampliem o seu acesso à educação e à formação profissional.

2. Em tudo o que fazem, as empresas costumam participar de novos processos de modo gradual, na base de projetos-piloto, visando, com isso, tatear o mercado e ganhar segurança. Por isso, para complementar a contratação direta, seria útil apoiar as empresas (em especial, as que têm cotas de 4% e 5%), que se disponham a entrar em parceiras com outras empresas para, em conjunto, contratarem mais portadores de deficiência.

3. Levando-se em conta a tendência mundial de encolhimento do emprego fixo, é aconselhável apoiar o trabalho por conta própria, a subcontratação, o teletrabalho e o "telecommuting", em parceria com empresas que possuem cotas elevadas, e difíceis de serem cumpridas. Trabalhar nesses novos arranjos laborais é uma tendência moderna, que não deve ser confundido com o afastamento dos portadores de deficiência do mercado de trabalho geral.

4. Para viabilizar os arranjos acima sugeridos e, ao mesmo tempo, assegurar o cumprimento de sua responsabilidade social, seria útil também criar um sistema de cota-contribuição dentro do qual as empresas pudessem exercer a opção de contratar diretamente; articular-se com instituições e empresas que fazem a desejada contratação; ou, finalmente, recolher recursos para um fundo que viria a ser usado, com prioridade, para educar e qualificar pessoas e estimular o setor privado a remover barreiras.

5. Por maiores que sejam os esforços da sociedade, os casos mais severos de deficiência terão de ser apoiados fora do mundo do emprego - em instituições de trabalho protegido. Mas, neste caso, todo cuidado é pouco. O ideal é a integração dos portadores de deficiência no mercado de trabalho regular pois, as instituições de trabalho protegido são freqüentemente sujeitas a uma fácil e perniciosa deterioração social. Só em casos especiais.

Enfim, é urgente explorar as vantagens comparativas de políticas combinadas. O centro de todas as ações nesse campo são os seres humanos que têm suas vidas em situações muito complexas. Não basta baixar decretos paternalistas, aprovar leis ambiciosas e aperfeiçoar o policiamento. O fundamental é criar mecanismos que sejam eficazes na redução e eliminação das barreiras.

O Brasil tem pela frente uma longa lista de providências a serem tomadas para poder oferecer aos portadores de deficiência a vida digna que eles tanto merecem. Perder o medo de combinar estratégias é um importante primeiro passo.