Publicado em O Estado de S. Paulo, 05/01/1999
Trabalho e comércio internacional
O comércio internacional tem sido marcado por um melodioso uníssono na retórica e uma incrível dissonância nas condutas. Há uma enorme convergência quando os países pregam a plena liberdade de comércio, assim como se abre um enorme abismo quando cada um deles procura se proteger o mais que pode.
O protecionismo moderno se baseia em barreiras não tarifárias. Algumas, como os controles fitosanitários, já fazem parte do repertório da Organização Mundial de Comércio. Outras, como o respeito a normas mínimas de trabalho, estão em fase de gestação.
No campo trabalhista, os Estados Unidos, a França e outros países ricos têm pressionado bastante para a aplicação de sanções comerciais, por parte da OMC, aos países que desrespeitarem as normas mínimas de trabalho.
Na última reunião da OMC em 1996, ficou decidido que esse assunto seria tratado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Depois de muitos estudos, a Conferência Anual da OIT, em agosto de 1998, aprovou a "Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho" que se baseia em quatro princípios:
"Todos os países membros da OIT têm a obrigação de respeitar, promover e implementar os princípios referentes a: (1) liberdade de associação e reconhecimento do direito à negociação coletiva; (2) eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório; (3) abolição definitiva do trabalho infantil; (4) eliminação de discriminações em relação a ocupações e empregos".
Será que as nações que defendem a tese das normas mínimas ficaram satisfeitas? Tudo indica que não, pois a OIT tem apenas força moral, enquanto aqueles países desejam usar a OMC para aplicar sanções comerciais.
A OIT procurou reforçar sua posição através de dois procedimentos. O primeiro prevê a realização de avaliações periódicas sobre os progressos em relação aos objetivos da Declaração. O segundo adverte que nenhum país poderá usar os seus princípios para fins protecionistas.
Nas avaliações periódicas será fácil verificar se, com as devidas nuanças de linguagem, os países possuem os quatro princípios inseridos nas suas leis trabalhistas. O grande problema será o de saber em que medida as leis são respeitadas no mercado de trabalho.
No caso do Brasil, os quatro princípios fazem parte da Constituição Federal. Nos artigos 5º, 7º e 8º fica claro que empregados e empregadores são livres para se associarem; a negociação coletiva é reconhecida como direito das partes; o trabalho escravo e do menor de 14 anos é proibido assim como estão vedadas as discriminações.
é verdade que 57% dos brasileiros estão no mercado informal e aí inexistem associação e negociação coletiva. Mas, essas práticas não estão proibidas, e fazem parte do repertório institucional do mercado formal.
é fato também que o trabalho infantil continua sendo parte do nosso mercado de trabalho. Mas, os programas sociais que envolvem um ataque às causas, e não apenas às conseqüências, como é o caso da bolsa-escola ou poupança-escola, vêem apresentando resultados animadores que poucos países podem exibir.
Resta o problema das discriminações. A nossa Constituição Federal é obscura ao estabelecer no Inciso XXXII do artigo 7º a proibição da "distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre profissionais respectivos". Não menos confusa, porém, é a redação da letra (d) da Declaração ao pregar a "eliminação de discriminações em relação a ocupações e empregos".
Afora essa questão, o Brasil tem chances de conseguir uma posição razoável nas avaliações da OIT que serão divulgadas como instrumentos de pressão moral sobre os países desviantes.
Apesar da OIT ter advertido que nenhum país poderá utilizar os quatro princípios com propósitos protecionistas, o que poderá aquele organismo fazer se alguma nação vier a usar suas avaliações para criar obstáculos a exportadores que, por causa deste ou daquele detalhe, forem considerados como desvios em relação à Declaração? E a OMC terá alguma força para agir nesse terreno, depois de ter passado o assunto para a OIT?
Essas são algumas das questões decorrentes da ação cândida de um organismo internacional que busca garantir o respeito à dignidade dos trabalhadores do mundo.
Ocorre que o mundo do comércio não se baseia em idéias cândidas, e muito menos em princípios de ética. Nele, infelizmente, prevalece o rolo compressor da competição que, apenas na aparência, se diz leal e civilizada. Por isso, a decisão da OIT e suas possíveis conseqüências merecem uma boa reflexão.
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