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Publicado em O Jornal da Tarde,31/12/1997

O seu emprego em 1998

Fomos vizinhos durante 10 anos. Ele se formou em contabilidade numa das melhores escolas - a Alvares Penteado. Trabalhou em várias empresas. Subiu bastante na carreira. Já tinha tempo para se aposentar. Mas as migalhas do INSS não cobririam suas despesas: dois filhos em faculdades particulares; outro, formado engenheiro, e sem emprego; sogro e sogra doentes, sob sua guarda; remédios e seguro médico, caríssimos. Enfim, aquele quadro que você leitor de classe média conhece bem.

O Galhardo é um daqueles homens que jamais pensou em ficar desempregado. Pois ficou. A firma onde trabalhava há oito anos terceirizou a contabilidade e despediu o meu amigo em setembro de 1996.

Fiquei sabendo do fato no início deste ano, através da sua esposa. Quando a Olga me telefonou, estava mais preocupada com a depressão do marido do que com a falta de dinheiro no lar. Ela me relatou que o Galhardo estava envergonhado da sua situação. Pediu-me ajuda, e também segredo.

Marquei um almoço e percebi logo que ela estava certa. O Galhardo rodeou, rodeou, rodeou, e não abriu o jogo. Começou dizendo: "Tirei um tempo para reavaliar minha carreira. Estou com 49 anos. Era hora de fazer isso..."

Apesar da boa encenação, o amigo deixou transparecer na sua face as marcas de uma escara que ele tentava manter invisível: a escara do desemprego. é triste ver um homem abandonado pelo mercado de trabalho. Mais triste é saber que o mercado o considera obsoleto. A obsolescência humana é uma tragédia de proporções colossais. Quando ocorre, ela produz problemas dramáticos nos campos econômico, pessoal e social.

"Estou numa fase de transição, prosseguiu. Busco novas opções de trabalho". Indaguei, com cautela, o que ele estava achando do mercado. A resposta foi evasiva: "Há muitas coisas interessantes para se fazer".

Procurei explorar com muito jeito o que o mercado estava achando dele. Com a voz embargada, o Galhardo se agarrou na sua auto-estima e disse: "Enviei meu curriculum para inúmeras empresas. Recebi várias cartas atenciosas, muitas delas assinadas pelos próprios presidentes. Eles têm gostado do meu perfil. Mas me consideram demasiadamente qualificado..."

Para o ser humano, nada angustia mais do que saber que seus conhecimentos se tornaram inúteis. Por isso, não demorou para o Galhardo explodir: "Será que piloto de Boeing é dispensado quando se torna demasiadamente qualificado? Dá para acreditar nisso? Será que eu deveria mudar de barbeiro porque o meu é arquiteto"?

A escara tornou-se visível. Quem não conhece pelo menos um Galhardo no Brasil atual? Quem não tem um parente que vem sendo considerado pelo mercado de trabalho ora como super-qualificado, ora como sub-qualificado e muitas vezes como inutilmente qualificado? é a saga do desemprego e do subemprego que começa atingir todas as camadas sociais.

A redação do Jornal da Tarde pediu-me para eu especular sobre o quadro do emprego em 1998. Tarefa difícil. Nós que estudamos o mercado de trabalho conseguimos explicar, com muita dificuldade, o que ocorreu no passado e de modo sofrível o que está ocorrendo no presente. Que presunção a minha ao aceitar a tarefa de prever o futuro!

Nessa empreita, seria cômodo adotar a política dos "dois cenários" - o pessimista e o otimista. Para cada um deles, eu apresentaria tantos condicionantes, que a visão do futuro acabaria ficando por conta do leitor. Uma outra alternativa seria a de tentar captar a convicção do leitor através de um tiroteio de dados, no pressuposto de que as pessoas bem informadas são as que sabem das coisas...

Fui tentado pelas duas estratégias. No cenário pessimista eu teria de dizer que o agravamento da crise asiática atingiria o Brasil em, cheio, piorando ainda mais o quadro do emprego. No cenário otimista, a crise seria superada antes de afetar a economia brasileira. Superado o susto, retomaríamos o crescimento e a geração de postos de trabalho.

Entretanto, é mais provável que você leitor esteja interessado em algo mais concreto. Na verdade, você quer saber o que vai acontecer com o seu emprego no ano que começa amanhã, não é mesmo?

A maioria dos analistas antecipa um crescimento econômico medíocre para 1998. Até o Presidente Fernando Henrique Cardoso - a encarnação nacional do otimismo brasileiro - previu um anêmico aumento do PIB da ordem de 2% quando, para gerar os empregos que o Brasil precisa, temos de crescer, no mínimo, 5%. Se isso se confirmar, a situação será grave, muito grave. Oxalá os analistas falhem em 1998 como falharam em 1997 ao anteciparem um Natal pobre e sem compras.

Mas, além de contar a sorte na resolução de crise asiática e com o fracasso da "chutometria" nacional, o que se pode fazer numa hora em que os empregos prometem se tornar mais escassos?

Os últimos anos nos ensinaram três coisas importantes: (1) destruir empregos é rápido; (2) reconstruir é demorado; (3) e, gerar novos, é demoradíssimo!

No meio desses hiatos ficam os milhões de Galhardos. Quem vai empregar um contador de 49 anos que recebia um salário direto de R$ 3.500,00 e que gerava para a empresa uma despesa da ordem de R$ 7.000,00 mensais?

A crise asiática é conjuntural e passageira. Aqueles povos passaram por problemas piores. Eles vão se acertar. Mas será que a dificuldade para empregar um brasileiro de meia idade no Brasil é também conjuntural e passageira? Penso que não.

Para a maioria das empresas, existe um refrão maliciosamente usado para descartar candidatos segundo o qual os profissionais de meia idade "sabem demais" e os de pouca idade "sabem de menos". Isso é o que ocorre com o Galhardo e com seu filho de 25 anos. Os dois estão sem emprego por razões opostas.

Se nada for feito, é pouco provável que as portas das empresas venham se abrir para os Galhardos em 1998. O Brasil precisa facilitar a entrada e a reentrada dos jovens e de seus pais no mercado de trabalho. A CLT tem quase 1.000 artigos e, no entanto, uma só forma de contratar mão-de-obra - através do emprego por prazo indeterminado. Precisamos de formulas intermediárias de contratação para abrigar os que perambulam pelo mercado de trabalho nos dias atuais.

Entre nós, ou se contrata pagando 102% de encargos sociais; ou se contrata, pagando 0%. Não é a toa que o mercado formal diminui e o informal explode. Esse foi o destino dos Galhardos. Depois de mais de um ano de insucesso na procura de empregos formais, os dois puseram-se a trabalhar com velho Passat da família. O pai, durante o dia, entrega encomendas para uma empresa que, por sua vez, foi subcontratada por uma transportadora que decidiu terceirizar seu departamento de serviço a domicílio. O filho faz o mesmo, à noite, para uma grande pizzaria do bairro.

Os dois ganham por tarefa e mantém relações informais com seus "empregadores". A transportadora, a firma terceirizada, a pizzaria e os Galhardos nada contribuem para a seguridade social. Todos, porém, estão cobertos por ela no caso de acidente ou doença (SUS). Essa equação que tem uma despesa certa e uma receita incerta, evidentemente, não fecha. Quem fechará, primeiro, será a previdência social.

Não seria melhor abrirmos no Brasil a possibilidade de se contratar os jovens em fase de formação com menos despesas para as firmas? Será que os diplomados por nossas faculdades não teriam interesse em trabalhar em boas empresas mediante um contrato mais leve em encargos sociais? Será que o talento e a experiência dos brasileiros de meia idade não poderiam ser melhor aproveitados se eles pudessem ser contratados pelas empresas com menos despesas indiretas?

A CLT é um caso grave de fadiga institucional. Ela foi feita para uma economia fechada e, por isso, não tem a menor chance de ajudar a colocação de trabalhadores em uma economia aberta, concorrencial e que exige novas maneiras de trabalhar.

é claro que o seu emprego vai depender muito de quanto o Brasil vai crescer em 1998 e do que vai acontecer com o seu setor de atividade. Mas, ele vai depender também da aprovação de leis trabalhistas mais amigáveis e que sejam capazes de acomodar, de forma civilizada, os milhões de Galhardos que não conseguem entrar ou reentrar no mercado de trabalho formal.

Por isso, para 1998, sugiro que você prepare e envie algumas dezenas de cartas aos parlamentares de Brasília que, numa hora como esta têm a obrigação desobstruir o que está obstruindo as poucas oportunidades de trabalho que existem para você e seus filhos.

Se você assim proceder, poderei lhe desejar, com tranqüilidade, um Feliz Ano Novo! Não se esqueça: a democracia é o melhor de todos os regimes e também o mais trabalhoso.