Publicado na Folha de S. Paulo, 23/11/2002
Não há milagres
O governo eleito deseja mudar a Constituição Federal, reduzindo a jornada de trabalho de 44 para 40 horas por semana, sem redução de salários, com o objetivo de criar empregos. Na sua lógica, uma redução de 10% na jornada atual levaria as empresas a contratar mais 10% de trabalhadores.
Os adeptos da medida citam que a jornada de trabalho na Europa, nos Estados Unidos e no Japão é menor do que no Brasil e que o mundo caminha para trabalhar menos, e não mais. Isso é verdade. Mas é preciso saber qual foi o método que os países usaram para reduzir a jornada.
Comecemos pelo início. Reduzir a jornada em 10%, sem reduzir salários, significa aumentar em 10% a hora trabalhada. As empresas terão um acréscimo de 10% na sua folha e salários. Há empresas que têm "gorduras" para suportar esse acréscimo sem maiores repercussões. Mas, num mundo que se torna cada vez mais concorrencial, isso não vale para todas elas, nem para a maioria.
Nestes casos, o que as empresas podem fazer? Há várias alternativas. A primeira é repassar o acréscimo de custo aos preços – o que causará inflação. A segunda é enfrentar as novas despesas usando os lucros – o que fará diminuir os investimentos e a geração de empregos. A terceira é buscar mais automação – o que redundará em dispensas, e não em admissões. A quarta é contratar os empregados adicionais sem carteira – o que agravará a informalidade que atinge 60% dos brasileiros. A quinta, e mais sadia, é buscar ganhar produtividade para compensar o aumento de custo. Isso, entretanto, não cria nenhuma hora suplementar de trabalho para empregar novos funcionários.
Como se vê, uma "canetada" na Constituição Federal tende a gerar mais problemas do que soluções. Não é possível gerar empregos por lei. Estes dependem de crescimento econômico, educação de qualidade e leis trabalhistas e previdenciárias modernas.
Mas o que dizer dos países que reduziram a jornada? Existem três tipos de jornadas de trabalho: a) a legal, que, no caso brasileiro, está fixada na Constituição; b) a contratada, que decorre da negociação coletiva entre sindicatos patronais e de empregados; c) a praticada, que é a realidade de cada empresa. Em vários países inexiste a jornada legal, porque tudo é contratado através da negociação coletiva (nos Estados Unidos, Inglaterra, Noruega, Austrália e outros).
A jornada legal tende a ser maior do que a contratada, e esta é maior do que a praticada. Por exemplo, a jornada legal semanal na Alemanha, na Holanda, na Irlanda, na Itália e em outros países da Europa é de 48 horas, mas a jornada contratada está em torno de 38 horas, sendo que em várias empresas trabalham-se 36 horas por semana. No Brasil também é assim. A jornada legal é de 44 horas, e a contratada em vários setores é de 42 horas e há muitas empresas onde se trabalham apenas 40 horas por semana, ou menos.
Objetivamente, a grande maioria dos países reduz (ou aumenta) jornada por negociação, e não pela legislação. Qual é a razão dessa opção? É que essa é a melhor maneira de praticar o referido ajuste entre produtividade e remuneração e de enfrentar os ciclos econômicos. Quando o mercado está fraco, reduz-se a jornada e aumenta-se a eficiência. Quando o mercado está aquecido, mantém-se a eficiência e amplia-se a jornada. Essas mudanças são fáceis de fazer em tempo hábil, por negociação, mas impossíveis de serem realizadas por legislação. Aliás, a tendência moderna é fixar uma jornada anual para facilitar esses ajustes.
Se o Congresso Nacional fizer a referida mudança na Constituição, estará impondo a mesma jornada, para o resto da vida, a todas as empresas do país – as micro, pequenas, médias e grandes, da indústria, comércio, serviços, agricultura e financeiras, de Norte a Sul e de Leste a Oeste. Será que todas terão condições de fazer o ajuste de produtividade acima indicado? Será que cumprirão a lei?
Penso que não. O Brasil é muito mais complexo e heterogêneo do que a França, que reduziu a jornada semanal para 35 horas por lei em 2000, e já está recuando da medida. Qual é a razão do recuo? É que, embora o emprego tenha crescido levemente nos anos 2000 e 2001, isso coincidiu com a aceleração do crescimento econômico da França naqueles anos. Nos primeiros dez meses deste ano, quando o crescimento caiu, o desemprego passou de 8,5% para 9% em pleno vigor da lei das 35 horas por semana. Além do mais, os trabalhadores da produção estão se sentindo extenuados devido aos ajustes feitos pelas empresas.
Não há milagres. Se o desemprego pudesse ser resolvido por lei, não haveria desemprego no mundo.
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