Artigos 

Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/05/2000

A pontaria da qualificação profissional

Em boa hora o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (CODEFAT) resolveu instituir um sistema de avaliação para conhecer a eficiência e a eficácia dos programas de treinamento e retreinamento, que consomem vários bilhões de reais por ano.

Trata-se de uma tarefa importante e desafiadora. Afinal, quem melhor conhece as necessidades do mercado de trabalho? O governo, as empresas, os sindicatos ou as escolas? Para que profissões treinar? Com que conteúdo? Para que empresas?

As pesquisas internacionais mostram que a falta de pontaria é a regra nos programas de treinamento, retreinamento e reciclagem profissionais (Thomas Lange, "Skilling the unskilled", International Journal of Manpower, vol. 20, nºs 3 and 4, 1999). Muitos programas têm grande sucesso no ensino (eficiência), mas baixo desempenho na colocação (eficácia). Nesse terreno, investir muito não é sinônimo de investir bem. O FAT investe muito. Com a avaliação recém-instituída, terá de provar que investe bem.

Os programas de treinamento e retreinamento oferecem oportunidades para os trabalhadores adquirirem novos conhecimentos que, teoricamente, lhes serão úteis para entrar, permanecer ou reentrar no mercado de trabalho. Alguns conhecimentos são de utilidade para um grande número de empresas, enquanto outros servem apenas para algumas delas.

O que é melhor para os trabalhadores – conhecimentos gerais ou específicos? Embora o primeiro tipo garanta mais alternativas de trabalho, as instituições de treinamento e retreinamento (e os próprios trabalhadores) tendem a escolher os treinamentos específicos.

Nesse caso, a questão de pontaria se avoluma. Será que há vagas abertas para esse tipo de trabalhador? Se for admitido, terá ele chance de permanecer no emprego? E, se não for admitido, o que fará com conhecimentos tão específicos?

Os trabalhadores que recebem conhecimentos gerais (básicos) desenvolvem lógica de raciocínio; adquirem habilidades para apreender outras coisas; trabalham bem em grupo; têm potencialidade para empregar-se em um grande conjunto de empresas (David Scoones, "Promotion, Turnover and Discretionary Human Capital Acquisition", Journal of Labor Economics, vol. 16, nº 1, 1998). Mas, por causa das pressões da necessidade imediata, os trabalhadores optam por treinamentos e retreinamentos específicos. E, para muitos, esse conhecimento fica rapidamente obsoleto.

O ajuste entre demanda imediata, demanda de longo prazo e o conteúdo curricular dos programas de treinamento e retreinamento é extremamente complexo. Na verdade, a dicotomia entre treinamentos gerais e específicos está perdendo o sentido prático, pois o mercado necessita de trabalhadores que tenham, simultaneamente, uma sólida formação básica e bons conhecimentos de tecnologia específicas.

Em pesquisa realizada pelo SENAI e São Paulo ficou claro que os empregadores da indústria esperam que um ferramenteiro, por exemplo, além de possuir os conhecimentos específicos sobre sua profissão, deve ter bom senso; tem de ser capaz de transferir conhecimentos de uma área para outra; deve saber trabalhar em grupo; ter boas noções de cálculo; e saber inglês – quase um Descartes!

Para uma instituição encarregada de treinar ou retreinar trabalhadores, a multifuncionalidade exigida pelo mercado é um enigma. Como treinar trabalhadores polivalentes, com currículos e professores monovalentes?

Retreinar, reciclar e reconverter mão-de-obra são atividades de alto risco. A apuração da pontaria é o grande desafio para essas atividades. E, lamentavelmente, não há receitas prontas para acertar no alvo.

A eficácia desses programas, porém, tende a aumentar à medida que eles sejam bem articulados com os sistemas de pesquisa, informação e intermediação de mão-de-obra. Os resultados mostram-se mais favoráveis, também, quando há um esforço integrado de empresas, sindicatos, escolas e governo. Por exemplo, a presença conjunta do sindicato e da empresa tende a prolongar o tempo de emprego do trabalhador retreinado. A atuação da empresa tende a dar atualidade e previsão aos conhecimentos demandados, hoje e amanhã, pelo mercado.

Por isso, a articulação entre instituições é tão importante quanto o volume de recursos que se coloca em cada uma delas. A busca dessa sinergia talvez tenha de tornar uma prioridade nos programas patrocinados pelo Ministério do Trabalho e por outras entidades que usam recursos públicos.

No meu entender, não seria demais montar imediatamente um projeto piloto no qual a referida sinergia viesse a ser a sua espinha dorsal para, então, contrastar esse tipo de modelo com aqueles em que as centrais sindicais ou entidades patronais executam suas tarefas de modo isolado. Ter-se-iam, de antemão, os resultados do esforço conjunto assim como os elementos para corrigir, direcionar e redirecionar os demais projetos na trajetória da eficácia. Depois de ter gasto tanto, sem saber para que, chegou a hora de gastar melhor – finalmente!