Publicado na Revista Exame, 04/10/00
Brasil: A batalha pela qualidade
Foi só voltar o crescimento para começar a faltar matérias-primas, embalagens e outros suprimentos. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas indica que 30% dos fabricantes de eletroeletrônicos, 27% dos de equipamentos de comunicação e 20% dos de tecelagens têm dificuldades de encontrar matérias-primas. Diante desse quadro, cabe perguntar: e com a mão-de-obra? Será que vai acontecer o mesmo? Faltarão braços e cérebros para as empresas nesta fase de expansão?
Os mais apressados poderiam responder com um sonoro não às perguntas acima. Afinal, o país viveu dois anos de dificuldades econômicas e de aumento do desemprego. A taxa do IBGE vem se mantendo acima de 7%, patamar muito superior aos 5,5% dos anos anteriores. Seria de esperar uma farta oferta de mão de obra à disposição das empresas. A realidade, no entanto, é bem diferente. Quem olhar o mercado de trabalho com cuidado verificará que já está em falta um tipo muito especial de mão-de-obra: a qualificada. Segundo a CNI, 66% das pequenas empresas e 53% das grandes estão enfrentando dificuldades para contratar trabalhadores qualificados.
Não pense que faltam apenas PhD's ou Prêmios Nobel. A carência atinge vários níveis. Os novos hotéis de cinco estrelas recentemente inaugurados, por exemplo, só conseguiram recrutar pessoal qualificado fazendo uma verdadeira "rapinagem" nos concorrentes. Nos setores de tecnologia mais sofisticada, a pirataria é ainda mais freqüente. Com a entrada de grandes empresas estrangeiras no setor petroquímico os engenheiros e pesquisadores da Petrobras vêm sendo diariamente assediados por salários e benefícios sedutores. Só para ilustrar: um chefe de pesquisa da Petrobras só aceitou um novo emprego depois de incluir no contrato duas enfermeiras para cuidar de sua mãe idosa.
São muitos os casos. O Centro de Solidariedade mantido pela Força Sindical em São Paulo está com 900 vagas em aberto há vários meses. Motivo: falta de candidatos qualificados nas mais diversas áreas, como representantes comerciais, eletricistas de edifícios, mecânicos de refrigeração, técnicos em telefonia e engenheiros mecânicos, dentre outros.
O pano de fundo para esse quadro é a mudança recente ocorrida na forma de produzir. Os investimentos estrangeiros realizados nos últimos anos concentraram-se em setores intensivos em capital, com grandes aportes de tecnologias de ponta. Isso requer pessoas treinadas, criativas, versáteis, conhecedoras de sua profissão e com espírito construtivo.
A retomada da atividade só complica essa situação. Em minhas recentes andanças por cidades do interior de São Paulo, como Sorocaba, Sumaré e Campinas, observei que várias indústrias têm toda a sua produção vendida para os próximos seis meses ou mais. O resultado é que passaram a recrutar trabalhadores nos municípios do ABC, onde ainda havia um estoque que sobrou da longa onda de desemprego. Mesmo ali, porém, a disputa ficou acirrada no momento em que as montadoras de automóveis passaram a trabalhar com "jornadas turbinadas", horas extras e mais empregados. Com isso, algumas empresas paulistas estão indo buscar mão-de-obra no Paraná, em Santa Catarina e até no Rio Grande do Sul.
Com a previsão de crescimento acima de 4% para o ano 2000 (5% para o setor industrial e 15% para os bens duráveis) e com o amadurecimento dos pesados investimentos realizados neste ano em agrobusiness, energia, infra-estrutura em geral, mineração, metalurgia, comunicações, construção de aeronaves, shopping centers, supermercados, informática e engenharia médica, prevê-se um mercado de trabalho ainda mais apertado para a mão-de-obra qualificada.
Aliás, esse fenômeno ocorre também nos países onde a educação e a qualidade da mão-de-obra são superiores às do Brasil. Alemanha, Inglaterra, Holanda e outros países desenvolvidos estão flexibilizando suas leis de imigração nos últimos dois anos para atrair profissionais estrangeiros em vários setores. Nos Estados Unidos, no mesmo o período, a entrada de imigrantes legais aumentou 17%.
A qualificação exigida pelas empresas envolve bons conhecimentos e boas atitudes. Na verdade, as atitudes estão se tornando tão importantes quanto os requisitos cognitivos. O mercado vem demandando uma nova ética do trabalho. Essa ética tem muito a ver com o modo pelo qual as pessoas encaram e realizam o trabalho. Já não basta saber fazer. É preciso fazer com zelo, dedicação, interesse e comprometimento.
Pesquisando redes hoteleiras de luxo, constatei que, entre os candidatos que dominam bem a profissão de cozinheiro, por exemplo, os hotéis dão absoluta preferência àqueles que, além de cozinhar, têm gosto em ornamentar os pratos. No caso dos garçons, recepcionistas e atendentes, são disputados os que têm prazer em servir.
Na indústria, o trabalhador está muito longe do consumidor. Mas no comércio e serviços, onde ocorre o maior crescimento de emprego, dá-se o inverso. É aí que moram as profissões do sorriso: lojas, bancos, clínicas, escolas, hospitais, empresas aéreas e outras. Faz parte da qualificação, tratar bem o consumidor. E não basta exibir aquele "sorriso de aeromoça". É preciso praticar uma cordialidade sincera.
Este conjunto de bons conhecimentos e boas atitudes é ainda raro no Brasil. A raiz do problema está na má qualidade da educação geral. Na Coréia do Sul, a força de trabalho tem 10 anos de boa escola. No Brasil, são cinco anos de má escola. Na Inglaterra, 79% da força de trabalho completaram o segundo grau. No Brasil, apenas 19%.
Além da precariedade do ensino, há um outro agravante. Os longos anos de recessão empurraram muitos brasileiros qualificados para outras atividades, inclusive de autônomos e tocadores de negócios próprios. A sua volta para a condição de empregado é, no mínimo, demorada.
Para piorar, a baixa educação dificulta a tarefa de reciclar os trabalhadores, o que reduz o ajuste da oferta de trabalhadores empregáveis. Trabalhadores com alta escolaridade têm muito mais flexibilidade para se movimentar entre uma profissão e outra.
A mensagem é clara: vencida a batalha da quantidade, o Brasil tem pela frente o desafio de realizar um mutirão nacional de grande envergadura em favor da qualidade. Educação não gera emprego, mas atrai investimentos que criam muitos postos de trabalho.
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