Publicado em O Estado de S. Paulo, 31/08/1999
O financiamento da formação profissional
No Brasil, a formação profissional é realizada por escolas dos setores público e privado, e pelas agências do chamado "Sistema S" como é o caso, por exemplo, do SENAI para a indústria, e do SENAC para o comércio.
As escolas do setor público recebem verbas orçamentárias provenientes de impostos; as do setor privado, vivem de mensalidades pagas pelos alunos ou empresas; e as do "Sistema S" são financiadas pelos empresários por via de recolhimento de 1% sobre a folha de salários.
No momento em que discute a reforma tributária, pergunta-se: por quê não atrelar o financiamento do "Sistema S" aos impostos ou às mensalidades - ou uma combinação dos dois métodos?
Para responder a essa questão convém examinar as peculiaridades da formação profissional e avaliar o que aconteceu nos países que fizeram essas
mudanças.
A formação profissional guarda íntima relação com os avanços tecnológicos. O trabalhador que tem mais sucesso no mercado de trabalho é aquele que conhece as tecnologias que as empresas usam e, além disso, possui capacidade de apreender as tecnologias emergentes. A escola que tem mais sucesso é a que produz esse tipo de trabalhador.
Nesse campo, o ajuste entre a oferta e a demanda de mão-de-obra tem de se guiar por critérios quantitativos e qualitativos. Não basta saber quantos ferramenteiros a indústria precisa; mais importante do que isso, é saber que tipos de ferramenteiros são necessários.
As pesquisas mostram que esse ajuste é melhor alcançado quando as empresas se envolvem com a formação profissional. Na Alemanha, o aluno passa metade do tempo em uma escola profissional e a outra metade dentro das
empresas. Na França, os empresários participam ativamente das es-colas profissionais, mantidas com recursos das empresas e do governo. No Japão, escola e empresa funcionam como vasos comunicantes, onde a comunicação é
intensa.
Esse envolvimento é fundamental para levar às escolas as demandas reais; para exigir delas uma formação de boa qualidade; para instigar mudanças rápidas de currículo; para criar novas modalidades de treinamento; etc.
Para garantir tudo isso, atrela-se o financiamento o mais diretamente possível aos usuários. Quando quem financia é quem utiliza mão-de-obra
qualificada, garantem- "pontaria", dinamismo e a necessária estabi-lidade de recursos para manter as escolas alinhadas com o futuro.
O Brasil seguiu o caminho do envolvimento. As escolas do "Sistema S" são financiadas e geridas pelos empresários, e fiscalizadas pelo Poder Público. Representantes dos governos federais e estaduais fazem parte de todos os conselhos deliberativos, e o Tribunal de Contas da União examina a aplicação dos recursos de todo o "Sistema S".
Não seria mais simples, recolher esses recursos diretamente dos
alunos e das empresas ou atrelar o financiamento a um imposto como, por exemplo, o ICMS federal, cuja criação está sendo cogitada na Reforma Tributária?
Nesse ponto, a história pode nos ajudar. O modelo do "Sistema S", que foi criado no Brasil na década de 40, espalhou-se rapidamente por toda
América Latina. Nos últimos dez anos, porém, vários países mudaram o seu financiamento nas direções acima mencionadas. O que aconteceu?
No Chile, onde se partiu para o pagamento de mensalidades, surgiu um sistema saudável do ponto de vista financeiro. A receita das escolas aumentou extraordinariamente. Mas, quem sustenta as escolas e influencia na sua orientação são os alunos e as empresas que podem pagar. O Chile perdeu a sua capacidade de fazer formação profissional básica e generalizada. Esta ninguém paga e, por isso, ninguém faz.
Na Argentina, a contribuição dos empresários foi suprimida e substituída por recursos provenientes de impostos. Em vista dos graves problemas econômicos porque vem passando o País, o
governo não resistiu a tentação de ir mudando gradualmente a destinação dos recursos, e se imiscuindo na administração das escolas de formação profissional. O financiamento pela via de impostos tornou-se incerto, irregular, imprevisível e demorado - o que acabou sucateando todo o sistema de formação profissional da Argentina.
No México a contribuição dos empresários foi substituída por um imposto incidente sobre o faturamento. Surgiram problemas imensos na hora de se redistribuir os recursos para os vários setores. Finalmente, isso passou a ser
acertado através de "câmaras setoriais" que, aos poucos, foram vinculando os recursos de um setor a ele mesmo, o que acabou com a economia de escala e destruiu o sistema geral de formação profissional do País.
Por isso, convém meditar bem antes de se proceder esses tipos de mudanças no Brasil. Será triste desmontar uma rede de escolas que, ao longo de meio século, conseguiu manter, de forma razoável, a sua atualidade tecnológica e a sua capacidade de ajustar currículos e programas com certa agilidade.
O Brasil não pode se dar o luxo de destruir o pouco que possui no campo da formação do capital humano. Parece mais conveniente aperfeiçoar o
sistema atual e, sobretudo, maximizar a utilização de seus recursos, antes de jogá-lo numa aventura incerta que poderá prejudicar, a um só tempo, os trabalhadores, as empresas e o País.
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