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Publicado em O Estado de S. Paulo, 10/11/1998

A dilapidação do capital humano

Os cortes nos orçamentos da educação e da saúde devem esquentar as discussões do Congresso Nacional que tem a responsabilidade de aprovar o Programa de Estabilização Fiscal para o período de 1999-2001.

As contrações dos investimentos em capital humano afetam o estoque atual, comprometem o estoque futuro e condicionam a recuperação econômica.

Em tempos de recessão, é comum esperar-se uma certa delapidação do capital humano em decorrência da redução dos recursos aplicados na área social.

Os estragos do crash do dia 24 de outubro de 1929 duraram mais de uma década. Nos primeiros três anos (1929-32), os Estados Unidos perderam um terço do seu PIB. Os lucros das empresas reduziram-se a 25% do que eram antes da crise. Os salários perderam 42% do poder aquisitivo. A renda dos agricultores caiu 68%.

Em 1933, 25% da força de trabalho estava totalmente desempregada. Entre os empregados, o número de horas trabalhadas encolheu. O tempo parcial explodiu (John K. Galbraith, The Great Crash, 1954).

é intrigante, porém, examinar o que aconteceu com a educação durante a recessão. Entre 1929-32, os salários dos professores sofreram um corte de 14%. Houve dispensas. Onde estas ocorreram, aumentou-se o tamanho das classes e ampliou-se o número de dias letivos. Cerca da metade dos diretores das escolas foram reclassificados como professores. Todos passaram a dar aulas, procurando-se minimizar os estragos da crise no campo da educação.

Resultado: a proporção de crianças matriculadas na escola primária aumentou. O mesmo ocorreu com os adolescentes da escola secundária. Por falta de oportunidades de trabalho, muitos prolongaram a sua estada na escola. Ninguém perdeu tempo.

Houve uma redução dos cursos noturnos e dos programas de educação de adultos. Por outro lado, teve um forte aumento a aquisição de livros. As bibliotécas ficaram lotadas de desempregados que aproveitaram o ócio para ampliar seus conhecimentos (David Tyack e outros, Public Schools in Hard Times, 1984). O tempo foi bem usado.

Com todos esses remanejamentos, o desempenho das escolas nos Estados Unidos, de um modo geral, manteve-se em nível bastante razoável e o capital humano reteve e até melhorou de qualidade. Ao dar uma forte ênfase na educação, o New Deal (1930-39) viabilizou a retomada do crescimento que teve lugar no início dos anos 40.

A Europa e o Japão no pós-guerra são também exemplos de sucesso em matéria de recuperação acelerada. Nos dois casos, uma força de trabalho de boa qualidade foi crucial. O Plano Marshall demorou para ser aprovado. Só o foi depois de demonstrada a capacidade da Europa em aumentar a produtividade do trabalho em 15% entre 1948-52 o que, aliás, foi ultrapassado.

Nos Estados Unidos, Europa e Japão, a recessão e a guerra destruíram muito capital físico, mas não conseguiram fechar as escolas. A qualidade do ser humano e a manutenção da capacidade produtiva da população foram os fatores-chave na retomada do desenvolvimento.

Se isso foi verdade para as décadas de 40 e 50, o quê dizer dos dias atuais que passam por uma revolução tecnológica meteórica e que exige tanta educação? O quê dizer de um país como o Brasil que tem um nível educacional abaixo do que existia nos Estados Unidos na década de 30?

A recessão não pode delapidar um capital humano que está em fase de formação. A responsabilidade do Com-gresso Nacional ao apreciar as propostas do Poder Executivo é histórica. Suas decisões marcarão as próximas gerações.

é hora de exercitar as trocas que preservem o infante sistema educacional deste País que, mais cedo ou mais tarde, terá de acomodar as necessidades econômicas e sociais de uma população gigantesca.

O ajuste fiscal é necessário, sem dúvida. Mas ele não pode comprometer o futuro das novas gerações. Numa hora como esta, escolher o que cortar torna-se mais importante do que definir o quanto cortar.